Entreatos/Peões

Peões
De Eduardo Coutinho
Espaço Unibanco 2, seg 29/11 20hs
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Entreatos
De João Moreira Salles
Espaço Unibanco 2, seg 29/11 17:40hs
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Fui afinal ver os dois lançamentos nacionais mais aguardados do ano. Para quem acompanha pouco este blog, não estou falando de Olga ou Cazuza, e sim de dois pequenos documentários: Peões e Entreatos. Dois filmes de uma produtora muito coerente, a Videofilmes. Vi num tranqüilo Espaço Unibanco sem o estresse da sessão de abertura e nem tava tão cheio quanto eu esperava.

Dito isto, uma primeira frase se impõe: Peões é muito mais cinema que Entreatos.

Entreatos, que eu aguardava com muita ansiedade, tem diversos méritos: um retrato de uma autoridade sem nenhum didatismo, com ênfase nos tempos mortos, com um olhar sobre a intimidade (que se revela através da “personalidade”, isto é, do Lula como pessoa, como indivíduo, como “gente como a gente” – o filme se propõe a uma desmistificação da autoridade), etc, etc. Mas aconteceu o que temíamos: o medo do João de colocar qualquer cena que fosse uma “ofensa” ao presidente e que pudesse trazer polêmica ao projeto e o colocasse num situação difícil acabou fazendo com que o projeto fosse “chapa branca”, quase um institucional sobre Lula. A simpatia ao “candidato” (hoje notoriamente presidente) é visível em todo o filme. Então, quebra a função de um documentário: nunca problematiza seu objeto de estudo, mas quer fazer com que o espectador se identifique. Então, Entreatos desaponta: acaba não tendo um olhar sobre o processo político (é um filme ingênuo sobre os jogos de poder), sobre o Brasil, sobre o seu personagem. Acaba sendo um conjunto de cenas legais, agradáveis, mas menos que um filme. Ou seja, um filme singelo, sempre agradável de se ver, mas dada a oportunidade que teve em mãos, o diretor perdeu a chance de fazer um trabalho memorável e fez apenas um filme simpático.

Já Peões é o outro lado da moeda. Está havendo uma grande controvérsia no filme, que muita gente não gostou, e muita gente acha que o Coutinho está acomodado, num mesmo estilo que agora comprova seu esvaziamento. Eu não concordo; vi o contrário. Enquanto Entreatos se esforça em selecionar as melhores cenas, as mais agradáveis, Peões se preocupa acima de tudo em um olhar, numa visão de cinema e de vida e deixa de lado tudo o que possa ser detalhe nessa busca. É um trabalho de extrema economia, que só se prende no essencial. Não é um filme de montagem, como o Entreatos; é um filme de concepção.

O que interessa a Coutinho não é propriamente fazer um relato do Brasil na época da greve, não é fazer o relato de como uma pessoa como Lula surgiu dentro desse contexto, mas é o que ficou desse sentimento nas pessoas de um Brasil de hoje. Totalmente avesso a qualquer proposta globalizante, Coutinho faz um trabalho muito íntimo, já que, por ser um trabalho histórico, mesmo que se tente fugir do termo strictu sensu, o diretor buscou resgatar a estrutura de Cabra Marcado. Para Coutinho, então, é tbem um processo de busca àquele período (Cabra começou a ser filmado em 1979, quando começavam as greves...). Coutinho é absolutamente straubiano: o rigor de sua estética é sua fortaleza. Como falávamos, Coutinho colocou em prática uma expressão de Paulinho da Viola “eu não vivo no passado, mas é o passado que vive em mim”, e explorou, com grande sutileza e profundidade, as marcas desse passado perdido no presente das pessoas, um presente que não é como elas sonhavam naquela época do movimento operário, mas é um presente em que a identidade de cada um dos depoentes se funde com o orgulho de ter sido parte de um movimento que transformou o país. A dignidade de cada uma das humildes pessoas é espetacular. E nisso que o filme tem um resgate com Santo Forte: o que é a religião para Santo Forte, é a política em Peões. A política é quase um pretexto para as pessoas falarem de si, de seus sentimentos íntimos. Enquanto falam, enquanto narram o que aconteceram, essas pessoas existem, essas pessoas se lembram, e ao se lembrar e ao existir em sua dignidade de não esconder para si mesmo que fizeram parte disso, e que são assim e não de outro modo, assumem uma posição humana inclusive num sentido de cidadania, de ser cidadão.

Coutinho não é ingênuo, e seu filme tbem é um trabalho sobre a linguagem, sobre a comunicação (como nos filmes de Rohmer, as pessoas só existem enquanto narram a si mesmas, e nessa “auto-fabulação” existe o encantamento de narrar e o encantamento do espectador de ouvir...). Peões é um filme “em busca de ser”, já que o caminho, o percurso é supervalorizado no filme (as imagens no início das ruas, o próprio início buscando um corpo a se entrevistar, a identificação das fotografias, etc.). Aliás, a identificação das pessoas que participaram, através da exposição de fotos e de filmes da época sobre a greve é pura metalinguagem: o cinema em sua função mais documental de registro, do “lembrar”, do “se ver ontem”, e “se reconhecer como parte de”.

Em toda a sua dignidade, em seu orgulho de fazer parte desse movimento, é incrível como todas as pessoas mostram cicatrizes. Peões é um filme sobre cicatrizes. As cicatrizes físicas, fruto de cortes ou acidentes na fábrica, devido ao intenso trabalho manual e as condições precárias de trabalho (exemplo típico é do próprio Lula, que perdeu um dos dedos da mão) se confundem com as cicatrizes da alma, evidentes em cada um dos depoimentos. No entanto, não existe propriamente uma visão completamente negativa, de fracasso: vários são os peões que exaltam que “melhoraram de vida” graças ao trabalho da fábrica, que conseguiram comprar uma casinha, ter algum conforto graças à vida dura na fábrica. De uma certa forma, eles sabem que poderia ter sido muito pior.

Nesses intervalos, pensamos que de uma certa forma, Peões é um filme sobre um Brasil. Um Brasil de 1979 em comparação com um Brasil de 2004. Mas o que Coutinho se interessa é como isso mexeu com a vida das pessoas, das pessoas mais típicas desse Brasil, dos “sem nome”. Esse inventário coletivo, Coutinho faz com enorme sensibilidade, maestria no seu conhecimento de cinema, e muita coerência. Falar que ele está se repetindo é ignorar um caminho particular de seus trabalhos, é ver o que tem em comum em construção de um projeto de cinema coerente e articulado, e rotulá-lo como “mero entrevistador preguiçoso” é um desserviço a filmografia de quem já é hoje o grande cineasta brasileiro da atualidade.

Comentários

Anônimo disse…
Cinecasulófilo é assim, sai do casulo somente para cantar feito cigarra, e cantar bem.
Esta crítica sobre os filmes mais aguardados do ano é tão nítida e sonora que emocionou este peão em construção.(Quisera eu ter esse rigor straubiano)
Ví o filme de Coutinho a alguns meses atrás, vou ver de novo para celebrar esta lucidez que me foi oferecida, só lamentando a lona que foi levantada sobre a amputação da cena da dona da birosca, que por sinal é um momento genial, e diga-se de passagem que foi cortada unicamente em favor do filme. abraços, cris.

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