[TIRADENTES2025] UM BALANÇO PROVISÓRIO

  

28ª Mostra de Tiradentes – um primeiro balanço provisório

 É difícil fazer um balanço mais amplo de um evento tão desafiador quanto a Mostra de Tiradentes. São comuns os relatos de enorme cansaço físico e mental diante da avalanche de informações, filmes, encontros e debates que envolve um evento como esse. Há pessoas que acham que cobrir um festival de cinema é algo que se assemelha a uma viagem de primeira classe, um passeio com comida farta, estadia confortável e programas turísticos. Não tenho o que reclamar do enorme conforto que o festival me oferece mas, ao mesmo tempo, minha experiência é extenuante ao extremo, de modo que, ao fim do festival, preciso tirar férias. Já comentei com amigos que, em dez anos que frequento Tiradentes, nunca consegui ir a uma única cachoeira nem visitar Bichinho ou São João del Rei. Tiradentes, um lugar que conheço tão bem e ao mesmo tempo conheço tão pouco, cidade que permanece misteriosa, pois o que consigo acessar sempre se passa em torno do universo dos filmes – que ganham uma dimensão própria.

Assim, é difícil, improvável, arriscado e precário realizar um balanço de uma mostra como essa. Em primeiro lugar, por serem muitos filmes, entre curtas e longas, com uma programação muito extensa e que é impossível acompanhar em sua totalidade – até porque os três locais de exibição (cine-tenda, cine-praça e cine-teatro) passam filmes simultaneamente. Segundo, porque os filmes são muito desafiadores, e não se tem tempo para se deixar decantar as percepções de uma sessão para outra. Como sair de uma sessão tão desafiadora quanto O mundo dos mortos e entrar, logo em seguida, para Antonio Parreiras, como o quarto filme do dia? Sinto falta daquele intervalo tão necessário, tipo uma hora entre um filme e outro, para que se possa caminhar um pouco para poder digerir um filme com mais cuidado. E, antes sequer que eu saia da tenda, várias pessoas já me interpelam em busca de uma avaliação – e cada vez me sinto menos apto a fazê-lo. Claro que os críticos (e curadores) vão, ao longo da vida, acumulando experiência para tentar lidar com situações como essa, mas é preciso perceber que, ao longo do tempo, se o peso dos anos confere experiência, há também um maior cansaço ou enrijecimento para lidar com o crivo do inesperado. Daí surge o esgotamento, acabamos inevitavelmente tendendo para nossas zonas de conforto, com o risco de utilizar alguma expressão ou palavra indevida (um dos curadores, aliás com razão rs, me deu uma cutucada sobre o uso indevido da palavra “irregular” para um dos filmes, etc.), estamos na iminência de um erro de avaliação. Pois cada filme é um filme, um universo completamente particular: estamos diante de visões de mundo e de cinema por vezes radicalmente diferentes. (Como ver Um  minuto... logo depois de Margeado?). E cada filme acontece ali naquele espaço do cine-tenda de formas misteriosas e inesperadas. Por exemplo, alguns dos próprios curadores-debatedores revelaram seu espanto quando (re)viram Batguano returns na tela grande. Se, no ambiente privado da seleção da curadoria – em casa, na tela pequena –, o filme havia despertado a atenção pela esfera do humor debochado e irreverente, ali na exibição coletiva do grande cine-tenda a sensação era de enorme melancolia, desencanto e desamparo. Estar em Tiradentes é presenciar o nascimento de filmes menores (uma arte-menor, como bem diriam alguns), que só acontecem ali no espaço mágico de Tiradentes. Estar em Tiradentes é presenciar o nascimento de filmes menores (uma arte-menor, como bem diriam alguns), filmes que só acontecem ali no espaço mágico de Tiradentes. Há os que identifiquem nisso um sintoma de reclusão e elitismo, mas eu estou entre os que, ao contrário, veem nessa pequena manjedoura, um inesperado sinal de iluminação – especialmente diante de um cinema brasileiro cada vez mais pragmático, uniforme, burocrático. Quando se apagam as luzes do cine-tenda, algo está para acontecer, e não se tem a menor ideia do que virá.

Por esse ponto de vista, considero um milagre que um evento de aposta curatorial tão radical aconteça sob uma estrutura de produção tão robusta. Tiradentes é um dos maiores – e talvez hoje seja o maior – entre todos os festivais de cinema no Brasil, em termos de sua estrutura logística e número de convidados presentes. Talvez até maior do que Brasília e Gramado se levarmos em conta a extensão de sua programação, e número de convidados. Apenas de imprensa foram mais de 100 profissionais credenciados. E aqui vão todos os méritos e reconhecimento para a Universo Produções e o papel da Raquel Hallak. Na cerimônia de abertura – longo evento de quase três horas de duração – fomos surpreendidos pelo tom nitidamente confessional que mostra as dificuldades com que Raquel Hallak consegue manter um evento com tal musculatura, mesmo após o governo Bolsonaro, mesmo após a pandemia, mesmo diante da mentalidade conservadora de todas as estruturas institucionais e empresariais brasileiras. 

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Com as mudanças de patamar entre Olhos Livres e Aurora – sendo que a Olhos Livres se tornou a principal vitrine do evento, e a Aurora específica para o primeiro longa – muitos esperavam que Tiradentes se posicionasse um pouco mais para o “hegemônico”, ou, em outros termos, que essa seção se deslocasse um pouco mais do perfil da tenda em direção ao da praça. Mas certamente não é isso o que se viu. Ao contrário: talvez essa edição de Tiradentes tenha se movido um pouco mais na direção do cine-teatro, ou ainda, para a seleção de filmes de perfil ainda mais radical. Considero que esta edição de Tiradentes se aproximou um pouco mais do perfil curatorial de um Ecrã, ou seja, na direção de filmes ainda mais radicais em suas propostas de outros cinemas brasileiros, para além dos padrões estéticos ou narrativos-comerciais, mas também e sobretudo dos padrões sociopolíticos mais em voga em boa parte dos contextos curatoriais, até mesmo dos festivais mais “progressistas”. E é curioso percebermos que essa inclinação para o radical aconteceu justamente na edição de maior estrutura logística e de produção dos últimos anos.

Aqui, o contexto curatorial foi reforçado por um conceito curatorial fundante, baseado em uma entrevista de Julio Bressane em 1993 (e esse dado de data é fundamental, pois é um momento em que o cinema brasileiro estava às mínguas pela falta de apoio estatal), em que ele dizia que a vocação do cinema brasileiro é ser experimental. Segundo Bressane, como não somos uma indústria consolidada e dado o apelo voraz e predatório das nossas elites, estamos sempre experimentando, estamos sempre tentando ser algo a partir de nossas precariedades, de modo que “ou o cinema brasileiro é experimental, ou não é nada”. A curadoria extrapolou essa provocação de Bressane reverberando um problema-slogan intitulado “que cinema é esse?”. Aqui, (não sei se é viagem minha rs) mas logo penso no brado político popular de Renato Russo quando dizia “que país é esse?”, levado para outro lugar. Pois, quando pensamos que cinema é esse, também pensamos que país é esse – mas para além das cartilhas sociopolítica de intenção edificante, pois esse questionamento é atravessado pelo conceito do experimental. Como disse o grande Rodrigo Lima em um dos debates, o desafio é que o político perpasse por dentro dos filmes, e não por fora deles. Esse foi um dos maiores desafios dessa edição de Tiradentes.

Dessa forma, a grande contribuição dessa edição de Tiradentes foi pensar outras possibilidades para o cinema brasileiro contemporâneo de invenção que fuja dos lugares-comuns já demarcados, pelas zonas de conforto estabelecidas seja pelo mercado seja pelo nosso próprio circuito dos festivais/da “esquerda progressista”.

Em primeiro lugar, os principais filmes da programação apresentaram outras propostas de dramaturgia para além da composição roteiro/decupagem/trama/identificação-dos-personagens. Em relação a isso, percebi uma enorme dificuldade de certos setores da crítica credenciada em dialogar com a proposta dos filmes exibidos. Ora, é claro que pode-se gostar mais ou menos de filmes como Kickflip, Um minuto... ou O mundo dos mortos, mas até para se gostar ou não, é preciso compreender o que está em jogo com esses filmes, qual a sua proposta conceitual, e é preciso criticá-los por dentro, desfiar as contradições ou desarranjos a partir de suas hipóteses – mas, em vez disso, o que se viu muitas vezes foi a recusa aos filmes sem sequer vê-los, ou seja, rejeitá-los por fora, meramente por sua casca ou aparência, não se propondo sequer a investigar suas naturezas. Ora, não se pode julgar um filme como Kickflip por não ser como Estrada para Ythaca, por não ter roteiro ou teleologia, etc. A originalidade de filmes como Kickflip ou Um minuto... reside justamente em como a montagem se organiza de modo radicalmente diferente de qualquer possibilidade de progressão dramática – a própria ideia de progressão ou desenvolvimento é recusada por ambos os filmes, daí achei extremamente oportuna a associação de Filippin com o “cinema de atrações” ou com o vaudeville. Em como esses filmes se utilizam de uma estrutura claramente precária e até certo ponto “amadora” para deslocar seus sentidos e sua (des)organização interna. Por exemplo, Resumo da ópera também produz essa operação de desconstrução, mas a “beleza” suntuosa de sua estrutura cênica, movimentos de câmera impressionantes e decor/figurino tornam o filme mais palatável em sua beleza mesmo diante de sua radical e vertiginosa deambulação desorganizante. Ou, por exemplo, me interesso por O mundo dos mortos não propriamente pelo seu rigor petrificado neostraubiano mas por propor a construção dessa atmofera hipnótica extremamente rigorosa por meio de uma nítida e evidente pobreza de meios. Nisso, O mundo dos mortos está mais para Pedro Costa que Straub, no sentido de se reapropriar de uma pobreza de meios para construir uma atmosfera rigorosa, ou seja, a carência de recursos não está ligada ao mero documental ou ao improviso.

Até mesmo suspeito que a ampla adesão a Um minuto... se dê por motivos laterais, como, por exemplo, o carisma de seu protagonista, e a identificação ao personagem (mesmo que seja pelo avesso), e não pela radicalidade da exposição de sua precariedade, até mesmo como espetáculo – algo brilhante se percebermos que WPC agradeceu o prêmio utilizando uma frase icônica de um filme nas bordas do clássico-moderno, que justamente trabalha de forma crítica a exposição narcísica de suas feridas – “senhor diretor, estou pronta para o meu close”, sintoma que comprova como WPC é consciente de seu lugar, em como ele usa o espetáculo de forma crítica a seu favor mas sem nunca deixar de perceber as suas contradições internas, jogando com elas num sentido performático (a vida é o próprio filme; o filme é a própria vida). Pois Tiradentes é tudo isso, e precisa de tudo isso para sobreviver. Desde o círculo razoavelmente fechado de curadores-debatedores-simpatizantes que circunscrevem, protegem e expandem o conceito para os iniciados, até a grande imprensa que faz entrevistas com notoriedades, divulgam o turismo e a culinária da cidade, e que naufraga diante dos filmes. Tiradentes vive e sempre viveu dessas contradições expostas entre as necessidades pragmáticas de se manter um festival dessa estrutura e a aura de ilha encapsulada-encantada das novas apostas do cinema brasileiro.

Em segundo lugar, a grande ousadia dessa edição de Tiradentes também se expôs pela aposta da chave do experimental como processo intrínseco que perpassa a estrutura dos filmes, em detrimento de uma leitura central do discurso em torno de chaves sociopolíticas mais imediatas, como o cinema militante, as pessoas/empresas vocacionadas (??!! – nunca compreendi bem essa expressão), os lugares-de-fala, as situações de pessoas de vulnerabilidade/minoritárias/invisibilizadas, enfim, de um cinema de recorte “identitário” – ainda que essa expressão seja atualmente defenestrada. Com isso, não quero em hipótese alguma dizer que o recorte dos filmes selecionados não expôs de forma clara questões sociopolítico-econômicas do Brasil de hoje, mas os modos como os filmes apresentados expuseram essas questões muitas vezes fugiram dos manuais/das cartilhas ou mesmo das opções mais sedimentadas em apresentar tais contextos. Sabemos que o cinema identitário tornou-se hegemônico nos festivais de cinema do Brasil com um contexto “progressista”, de modo que, mesmo correndo o risco de estigmatizar uma produção plural, com muito mais nuances e sutilezas – não seria exagero afirmar que o cinema brasileiro transita entre o cinema narrativo-mercadológico e o cinema militante-identitário. (Sabemos também que não raras vezes o identitário acabou infelizmente sendo tragado, absorvido, fagocitado ou cooptado pelo mercado ou pelo circuito hegenômico, como mero clickbait para se angariar likes pelo politicamente correto ou financiamento pelos editais, mas essa é uma outra conversa mais delicada...) Se alguns ficaram incomodados com o suposto excessivo falocentrismo e o excesso de pênis nas telas, esse falocentrismo se afastou tanto do “cinema de lacração” quanto da “denúncia edificante” vista em boa parte dos eventos mais ou menos “progressistas” de nossos festivais de cinema. E é na conjugação desses dois pontos que considero que Tiradentes, nessa edição, se movimentou aproximando-se mais do Ecrã do que de Brasília. Talvez esta seja a edição que mais sentimos a marca da presença de Francis Vogner dos Reis como coordenador curatorial, desde que se estabeleceu nessa posição, após a saída de Cleber Eduardo.

Talvez esta edição de Tiradentes tenha sido marcada pelo legado de dois filmes bastante radicais. Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo, de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro; e Kickflip, de Lucca Filippin. Dois filmes que utilizam uma suposta precariedade dos seus meios de produção para produzir ensaios, entre a ficção e o documental, entremeados pela performance. Há algo performático de como esses filmes possuerm a consciência de autoencenar seus contextos afetivos e sociais para além dos manuais sociopolíticos ou ainda afastando-se dabordagem do “cinema afetivo”. Em ambos os filmes, a precariedade dialoga de forma íntima com certa sensação de amadorismo. A precariedade é radical; a relação entre cinema e vida é esgarçada, impedindo qualquer relação de unidade e todo, desenvolvimento ou progressão, mas numa aposta profunda pelo fragmento do instante, pela potência do tempo presente. Não seria exagero se pensássemos ambos os filmes como blocos de sensações polimorfos, dispersos, descontínuos. A montagem desses filmes estabelece relações difusas, frustrando o espectador que busca relações de ancoragem. Nesse sentido, Kickflip é ainda mais radical que Um minuto..., este guiado pelo carisma ambíguo de seu protagonista. Kickflip opera numa lógica muito particular entre o esvaziamento e o pertencimento, entre o íntimo e o distante, entre o interior e o exterior, para promover um exame complexo das relações de comunidade de um grupo de jovens do interior paulista. Não há narrativa de amadurecimento; não há percurso ou trajetória de desenvolvimento ou de “formação de consciência”; não há relações sociais típicas de pertencimento; não há contextos sociais ou psicológicos de chave de leitura explícita; não há ancoragem com referências artísticas ou cinematográficas a priori (como Ythaca se referia a Vento do Leste). Em Kickflip, os jovens não chegam a lugar algum, não amadurecem, não se transformam ao longo da narrativa – não há nada a não ser o compartilhamento do seu tempo presente, com todo o vazio e toda a potência – não há pote de ouro, não há transformação ou descoberta. A relação com o espaço e tempo – extremamente inventiva – desorienta o espectador que busca as relações de ancoragem mais tradicionais. Ainda assim, esse grupo de jovens vive, cria, tentam se divertir, tentam fazer a manobra anunciada pelo título, ainda que fracassem, não importa bem se conseguem ou não, continuam fazendo, repetem, não para aperfeiçoar e “aprender com o fracasso” mas simplesmente para por-se em movimento, e isso só já basta, e é só.

Já o complexo Um minuto... apresenta-se a princípio como um documentário-ensaio em forma de diário sobre o cotidiano de Wesley Pereira de Castro trancafiado em casa durante a pandemia. Mas, por trás do diário, desvela-se um filme extremamente complexo e ambíguo, um ensaio sobre um personagem em condições sócioeconômicas e psicossociais muito precárias que busca, ainda assim, manter-se são, vivendo a vida possível. Ele talvez precise autoperformar a sua exposição narcísica – quase um alter ego de Gloria Swanson mas num sentido muito mais precarizado – para continuar vivendo, porque é tudo que se tem. É preciso inventar um personagem de si mesmo, é preciso inventar um filme, para se manter a ilusão de que se deve prosseguir persistindo, apostando na validade da vida. Expor-se como último refúgio possível: a autoperformance em comicidade derrisória mas também expiatória surge como válvula do desespero. Uma poética do desespero (um pouco como, em outra chave, é o personagem de Tavinho Teixeira em Batguano returns). Uma gargalhada diante do abismo. Rir: crise enfrentada sem angústia, sem chave moralizante, sem sacrifício para a redenção. Autoperformance como exposição. Ex-por-se. Narciscismo como antinarcisismo. Apostar tudo na potência do instante, viver um dia de cada vez – viver da arte (os livros e filmes) e da criação mas também lavar a louça, cuidar dos animais... Temor e Tremor. O sublime. É preciso ver Um minuto... por sua poética.

Mas esta edição de Tiradentes não deve ser reduzida a esses dois filmes tão jovens, mas a outros conjunto de tendências mais difusas e, por serem menos aderentes às tendências do momento, tendem a ser menos comentadas – do neostraubiano O mundo dos mortos, de Pedro Tavares, ao neobressoniano As muitas mortes de Antonio Parreiras, de Lucas Parente. Do neobarroco Resumo da ópera ao eslavo Margeado. Da polissemia política de Deuses da Peste ao surpreendente Batguano returns. Do imenso panorama de cinefilia de Relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísica, de Julio Bressane ao grande tour de force de Odradek, de Guilherme de Almeida Prado. Ao final, a pergunta “Que cinema é esse?” permanece ressoando... 

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 Em relação ao meu próprio papel individual dessa cobertura, me sinto às vezes como o personagem de Mastroianni em A doce vida, circulando de grupo em grupo sem pertencer a nenhum, ou às vezes como um dos personagens de O mundo dos mortos, tentando encontrar algum sentido de vida enquanto me percebo como natimorto. Ou – como confessei a alguns amigos – às vezes me sinto muito velho para conversar com os críticos jovens e outras vezes muito jovem para conversar com os críticos mais velhos rs. Ao mesmo tempo, agora assumi que não quero mais conversar com um conjunto de pessoas, entre elas velhos amigos que agora sequer mais reconheço. E é muito saudável assumir-se assim com todas as nossas intransigências e limitações. Ao mesmo tempo, nessa edição acho que nunca estive diante de tantos filmes de amigos, amigos tão diferentes e distantes. Como escrever sobre o filme de uma pessoa amiga? Algo que sempre procurei enfrentar de frente, pois considero que uma postura ética não é isentar-se da implicação, mas explicitar a implicação, e não refutá-la, porque é impossível. Não é possível escrever ou participar sem se envolver, sem deixar de ser quem você é – até porque isso é o diferencial. Julgo que eu posso escrever sobre o filme do Fabio e WPC, apesar desse filme ser dedicado a mim, exatamente pois, pelo fato de conhecê-los tão bem, sei exatamente bem o que estava em jogo no filme, e consigo adentrar em minúcias que outros que veem a obra por fora talvez não alcancem – alcançam outros sentidos por certo por vê-lo de fora, mas alguns outros sentidos talvez não alcancem. Algumas dessas minúcias posso falar para os realizadores em conversas privadas e outras considero que devo torná-las públicas – e essa é a questão ética. Uma vez vi Candeias dizendo que, após exibir O vigilante numa aula de PESGomes, ele ficou feliz que Paulo Emílio fez uma grande fala elogiosa para o público, e logo após numa conversa privada com Candeias, ele fez uma fala severa, questionando-o de várias opções (e isso não é contraditório, mas ao contrário é ético e político). Ou mesmo, posso vir a público questionando filmes de meus amigos, como o fiz com filmes do Alumbramento, o que em última instância contribuiu para a ruptura desses laços de amizade – o que lamento mas não me arrependo. Manter-se íntegro no cinema brasileiro não significa deixar de se manifestar publicamente sobre filmes/projetos de pessoas que você conhece ou até participou – pois não adianta não escrever e continuar atuando/influenciando nos bastidores, nas coxias, mas manifestar-se deixando explícita sua implicação – seja favorável seja desfavoravelmente – e isso sim é que é ética e isso sim é para poucos. Algo que percebi no campo de vaidades do cinema brasileiro é que quando alguém denuncia algum movimento de oportunismo, o sistema vai agir no sentido de tachar esse gesto de oportunista, tentando atacar a reputação de quem fala, e não o argumento em si. Quem denuncia o oportunismo é logo tachado de oportunista, pois assim o sistema se torna autoimune e se protege. É preciso desmarcarar o oportunismo de certas pessoas que acusam outras de oportunismo não para desvelar os favorecimentos do sistema mas, ao contrário, como uma falsa denúncia para jogar névoa de hype que visa justamente encobrir outros maiores favorecimentos oportunistas.

Tiradentes é um palco de debates e de disputas, e os debates continuam ressoando... Nesse balanço, me omiti sobre um filme que acabou tendo holofotes não pela obra em si mas pelo hype de polêmica. Não vi o filme nem o debate. Minha Tiradentes não passou por esse momento. Preferi concentrar minha energia em outros aspectos.

Gostaria de escrever ou comentar sobre tantos outros filmes e momentos, outros longas e também curtas, muitos curtas, mas não tive fôlego pelo menos nesse momento. Gostaria de rever filmes e ter um tempo para decantar todas as sensações. Mas a vida continua, o tempo não para, preciso viajar, assinar documentos, pagar contas, enfrentar tantos obstáculos e desafios e todas as coisas-mundo que ainda virão.

São tantos encontros e sensações. Rever amigos. Torcer por eles, mas sem deixar de analisá-los criticamente. Conhecer novos amigos e romper com outros. Enfrentar de frente os rompimentos. Não como superação dos ressentimentos, mas para promover um recorte mais saudável daquilo que me toca e me interessa prosseguir. Escolher caminhos e apostar neles – independentemente para onde irão me levar – foram sempre assim minhas escolhas críticas. Intuição e desejo. Será que, mesmo depois de todo o arfar e todo o peso do percurso, ainda posso me apaixonar? Ainda posso me surpreender? Se tremo ao ofegar, é porque o caminho ainda me afeta, é porque ainda teimo em prosseguir. Estava mais desanimado. Esta edição de Tiradentes me fez perceber que ainda posso ter energia para dialogar com o presente. Se consigo conversar com Kickflip, posso firmar minhas esperanças no presente.

 

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