[TIRADENTES2025] RELÂMPAGOS DE CRÍTICAS, MURMÚRIOS DE METAFÍSICA

 

[COBERTURA DA 28a MOSTRA DE TIRADENTES 2025] 


RELÂMPAGOS DE CRÍTICAS, MURMÚRIOS DE METAFÍSICA

de Julio Bressane e Rodrigo Lima

 

 

               Escrevo este texto como fã incondicional da filmografia e da trajetória de Julio Bressane, o mais inquieto e criativo jovem veterano cineasta do nosso cinema brasileiro, e como grande admirador de A longa viagem do ônibus amarelo (2023), uma odisseia de mais de oito horas de duração que revê a trajetória do realizador por meio da remontagem de seus filmes. Remeto-me ao Ônibus amarelo ao abordar este novo filme de Bressane/Lima por serem dois filmes-irmãos, no sentido de serem filmes de arquivo – sem comentários, narração ou efeitos – que possuem um desejo de história, ao revisitar um material de arquivo para investigar suas ressonâncias no presente. É uma pena que não consegui escrever algo sobre Ônibus amarelo mas o considero uma das mais importantes obras do cinema brasileiro dos últimos anos, justamente por como a montagem consegue disparar sentidos e associações que nos façam provocar uma reflexão sobre um desejo de história, que, longe de ser teleológica, abre fissuras e ranhuras por sua não linearidade.

Mas não é o que acontece nesse novo filme. O título vem de um poema de Fernando Pessoa, que, na versão dos diretores, em linhas bem gerais, os relâmpagos seriam as texturas dos fotogramas que disparam as camadas invisíveis de sentidos, e os murmúrios seria a montagem que atua para promover as reflexões acerca do intangível. Bressane e Lima reforçaram que o projeto busca, por meio de um mergulho pessoal em um conjunto de filmes cujo acesso estava disponível, atingir o cinema – uma camada invisível que persistiria por trás dos filmes. São aqueles momentos em que o cinema – invisível – se revela, de forma sorrateira, para além dos filmes em si.

Uma coisa é quando Bressane se debruça sobre o material filmado por ele próprio ao longo do tempo, revisitando sua própria trajetória. Mas aqui, quando o projeto ganha um contorno panorâmico sobre a própria trajetória do cinema brasileiro, alguns problemas começam a se enunciar. Primeiro, a disposição dos filmes ocorre de forma cronológica, do primeiro cinema silencioso até o cinema dos nossos tempos, assumindo, mesmo que indiretamente, uma certa teleologia. A linearidade cronológica reduz o efeito das associações que a montagem poderia propor por meio de relações mais inventivas. Segundo, pois especialmente a pesquisa do cinema brasileiro dos primeiros tempos me pareceu um tanto convencional. Seja pelos títulos escolhidos (basta observar que não há muita diferença entre os títulos escolhidos na primeira parte do filme de Bressane/Lima com o canônico Panorama do cinema brasileiro [1968], de Jurandir Noronha) seja pelos próprios trechos dos filmes escolhidos. Ficou parecendo que faltou uma maior pesquisa dos diretores sobre o primeiro cinema brasileiro, especialmente tendo em vista os avanços dos estudos de cinema sobre esse período. Mas, por exemplo, o cinema de cavação continua de fora – como já havia comentado criticamente Bernardet há um bom tempo atrás. A visão dos diretores sobre o primeiro cinema brasileiro me pareceu canônica e tradicional, e a montagem produz poucas fricções, fissuras ou tensões em torno desses filmes, com uma abordagem cerimoniosa demais. É diferente do que, por exemplo, Carlos Adriano produz ao revisitar o material do cinema dos primeiros tempos. No caso de Adriano, a aposta nas texturas dos fotogramas, e das fricções produzidas pela montagem aí sim atingem camadas mais complexas de significado, recontextualizando essa material à luz da experiência do próprio realizador, e também a partir de um deslocamento, com efeito crítico. Não é o que acontece no fimes de Bressane/Lima, em que as imagens ainda permanecem com uma aura de reverência/referência indicial.

O que mais me interessava em Ônibus amarelo era justamente seu desejo de história, num diálogo com as teorias contemporâneas da história que colocam em crise justamente a construção de uma narrativa em torno de uma historicidade teleológica. Em Relâmpagos, tanto o olhar para a trajetória do cinema brasileiro (especialmente em seus primeiros tempos) quanto a construção formal em torno dos filmes escolhidos me pareceu reduzir a potência desse recorte, soando mais convencional e até mesmo canônica. Reforçando uma trajetória do cinema brasileiro construída pela historiografia clássica, consolidando recortes canônicos e prolongando invisibilidades.

De outro lado, além da ênfase cronológica, que tende a certa aposta teleológica, surpreende que, a partir do cinema moderno, Bressane/Lima tenha fechado o recorte dos filmes escolhidos em torno de sua própria filmografia, ainda mais porque o filme anterior já se concentrava nos seus próprios filmes. É como se o cinema brasileiro transitasse em uma trajetória de invenção recôndita que finalmente culminasse nos próprios filmes do realizador, que assumem uma instância central nessa trajetória. É claro que sempre é possível afirmar que Relâmpagos não trata de uma trajetória do cinema brasileiro, mas apenas uma genealogia do próprio cinema do realizador, ou seja, quais texturas gravitavam no cinema brasileiro até o fim dos anos 1950 que produziram efeitos e influências que desembocaram na filmografia do realizador. Mas, ainda assim, fica a sensação da produção de aura em torno de um “Bressanecentrismo” que, em vez de abrir fagulhas ou janelas para o mundo, as fecha em torno da própria trajetória do realizador. Os problemas de método de Relâmpagos não estão muito distantes dos de Revisão crítica do cinema brasileiro, quando Glauber revê a história do cinema brasileiro sob o prisma do processo de construção do Cinema Novo. O olhar de Relâmpagos para o cinema brasileiro não consegue abarcar muito pouco para além da construção da própria trajetória de Bressane. Inclusive e principalmente pelas suas invisibilidades. Por exemplo, o Cinema Novo está totalmente ausente da Relâmpagos. Se a chanchada de Oscarito/Grante Otelo está presente, produzindo ecos em filmes do realizador como A família do Barulho (1970), a pornochanchada permanece invisibilizada.

O maior interesse de Relâmpagos permanece sendo as imagens em si, os momentos de iluminação que surgem. Os trechos do cinema de Francisco Fleming ou Chianca de Garcia. As sequências mágicas dos transgressores filmes de Bressane. Etc. O filme sobrevive mais por esses momentos que pulsam do que mais propriamente por seu desejo de construção formal, cujas contradições latentes problematizam o panorama aqui apresentado.

 

 

 


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