[TIRADENTES2025] PARQUE DE DIVERSÕES
[COBERTURA DA 28a MOSTRA DE TIRADENTES 2025]
PARQUE DE DIVERSÕES
de Ricardo Alves Jr.
Um
fim de tarde como todos os outros em Belo Horizonte. Homens caminham pelo
Centro de Belo Horizonte: alguns saem do trabalho; outros, de suas casas. O sol
se põe. A noite, como todos os Centros, vai ficando mais deserta. Uma tarde
como qualquer outra, mas, ao mesmo tempo, há algo de diferente no ar. Talvez
certa ofegação; talvez certa excitação; talvez certa hesitação. Não se sabe ao
certo. Já é noite. Até que um deles rompe o cadeado e entra no parque da
cidade. É o Parque Municipal de Belo Horizonte.
Eu já tinha ouvido que Parque de diversões era
“sobre pegação gay”, sobre cruising. Mas o que me surpreendeu foi que o filme
está longe de ser um documentário cru sobre sexo. Em vez disso, o filme
desenvolve um pensamento cinematográfico em termos de um cinema de atmosferas
que se desvela por meio de uma mise en scène sofisticada.
Não há depoimentos; não há
contextualizações históricas diretas sobre a importância do local para a cena
gay; não há manifestos da opressão da cena gay; não há ênfase em determinados
personagens como condutores de uma possível narrativa de identificação. O que
há é um clima cinematográfico em torno de corpos que desfilam por uma espécie
de passarela natural, e que, ali naquele lugar – público e secreto – eles podem
ser, à vontade.
O filme já começa com um big
close de um olho, e um poema de Orides Fontela que fala sobre o jogo e o
brinquedo. “Quebrar o brinquedo é mais divertido”. É uma pista das estratégias
de Parque de diversões. Primeiro, o papel do olhar. Assim como as personagens
percorrem o parque em busca de aventura e diversão, o espectador também se torna
um voyeur que compartilha a experiência
do clima de busca. O início do filme apresenta o clima do Parque aos poucos
para o espectador, que entra naquele universo sem pressa, deixando-se envolver
pelo clima que mistura uma certa excitação com uma certa hesitação. Hesitação
que circula entre o próprio medo do desconhecido do que propriamente uma situação
de insegurança. (Não há corpos gays sendo violentados ou oprimidos; não há
polícia ou expressões do sistema vigilante e persecutório). Corpos que se
observam e o prazer que surge em entregar-se ao desconhecido. As estratégias do
filme articulam o tempo dessa descoberta e a deambulação em torno da área do Parque
com o prazer em observar e ser observado. Dar a ver – um tema cinematográfico –
em torno de uma visualidade noturna misteriosa, sombria e enigmática, cujos
códigos vão se revelando aos poucos, sem pressa, até chegar ao orgasmo.
Profano, divino e maravilhoso. E também o mistério. Me interesso bastante por
Parque de diversões pelo modo como o mistério vai adentrando no filme, em como
o olhar expressa um gosto pela expressão de um desejo reprimido. O desejo abre
um campo para o imaginário – e o filme mergulha nesse imaginário do desejo
ganhando forma por meio da matéria – o toque do corpo, a volúpia carnal. O
desejo se torna carne, e a deambulação do filme é sobre essa travessia, que
envolve um percurso, um percurso físico. Por exemplo, um momento do filme que
mais coroa essa passagem do desejo à carne é quando um senhor cego tem um amigo
que conta a ele o que se vê. Ver se torna narrar – e também imaginar. Prazer em
ouvir e prazer em narrar. Mas chega um momento que o objeto do olhar sai do
extracampo e entra em cena, e acaricia o homem cego. O que era desejo se torna
carne – e para tornar-se carne é preciso percorrere a adentrar a superfície do
parque e se materializar por meio do corpo. (Vejo também a geografia do Parque
como um próprio corpo, que é percorrido e penetrado pelos visitantes, que
adentram em suas áreas interiores, recônditas, pouco habitadas, misteriosas.)
Parque de diversões não está
preocupado com contextualizações históricas ou sociológicas, nem com a
psicologia dos personagens. Mas no clima de mistério em torno da materialização
dos desejos num lugar público mas fechado. São personagens que desfilam numa
passarela para verem e serem vistos. E se comerem, se quiserem. Há algo de
claramente performático naqueles corpos que ali estão. Parque de diversões deve
ser visto mais pela performance do que pelo prisma do documentário. Há algo de
ficção nos climas de mise en scène que são criados. É umm filme de estímulos
sonoros e visuais, si/ci-nestésicos. Essa é a sofisticação formal do filme:
expressar o desejo por meio da materialização de um imaginário, e, com isso, oferecer
ao filme um plano de fuga que escapa de sua vocação documental crua e embarcar
em uma aventura de performatividade. As estratégias híbridas entre o documental
e a ficção – tema tão caro ao cinema contemporâneo – ganham outras roupagens e
camadas. Parque de diversões não é uma sucessão de esquetes de pegação como num
filme gonzo, é mais sobre o clima de mistério e sedução em torno do ato, mas,
nos momentos que o filme considera adequado, ele avança para momentos de sexo
mais explícito. É bem interessante como o diretor vai guiando o filme entre as estratégias
de mostrar e não mostrar. E, em alguns pontos, ele não tem receio ou pudor de mostrar
de fato o ato sexual – mas não em excesso, mas apenas quando ele acha mais
adequado. Pois o sexo não é apenas a penetração mas é também o universo da
conquista, mesmo num território com códigos implícitos tão próprias.
Por fim, é muito interessante
ver um filme como esse num festival de cinema numa cidade no interior, com casa
cheia, inclusive com vários homens heteros e casais assistindo ao filme. Mesmo
as pessoas que não embarcaram na proposta, saíram de forma discreta, não espalhafatosa,
de forma respeitosa. Isso é quase um milagre no mundo tão intolerante em que
vivemos e comprova como a Mostra de Tiradentes vem construindo, num processo ao
longo de muitos anos, um clima cinematográfico em que um filme como esse pode
existir sem necessariamente “causar”, sem ser necessariamente um problema.
Pois, assim como seus personagens, Parque de diversões não quer afrontar nada, não
quer violentar o espectador, ele apenas quer poder ser e se divertir à vontade.
(Divertir-se: já pelo título, Parque de diversões é, também, um filme de
entretenimento). E, ali aquele cine-tenda se transformou em parque, em que,
pelo menos naquele lugar, pode-se viver a aventura de ser do cinema sem ser
particularmente incomodado.
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