[TIRADENTES2025] MARGEADO
[COBERTURA DA 28a MOSTRA DE TIRADENTES 2025]
MARGEADO
de Diego Zon
Do
mar à lama; do luto à vida. Margeado
aborda os impactos do rompimento de uma barragem em uma família de uma vila
pesqueira. Ainda mais tendo em vista os desastres ambientais de Minas Gerais, o
tema ganha proporções ainda mais urgentes. O problema das barragens envolve não
apenas o estado de Minas, mas outros, como o Espírito Santo, visto, por
exemplo, o ocorrido em Baunilha, Colatina, em 2022. Margeado investiga esse impacto mas não do ponto de vista das
origens do conflito ou pela prespectiva macropolítica mas a partir de uma
família que se desestrutura em decorrência da tragédia. O drama ganha
proporções mais profundas com a morte da matriarca – Iara (Verônica Gomes), que
domina o primeiro quarto do filme, numa morte simbólica em que ela é tragada pelo
mar que se transforma em lama, uma linha limítrofe que demarca os limiges entre
a vida e morte – e, no segundo bloco, pela morte do pai (Antonio Pitanga).
Órfão, o personagem chega a uma terra estranha buscando não apenas velar o pai
mas reconectar o rumo de sua vida a partir das ruínas desse passado não
assimilado. Velar o pai; velar o rio – Margeado
é guiado pelo tempo do luto, um filme cerimonioso e solene sobre as
possibilidades de prosseguir o curso da vida diante da morte. Dingue é um rio:
assim como o rio, Dingue (na bela performance de Danilo Andrade) tenta seguir
seu rumo natural diante da indiferença do mundo.
Mas
Margeado não é um filme de denúncia
macropolítica nem tampouco um melodrama sobre o luto. O que no fundo Zon
procura compartilhar com o espectador é promover um reencontro com outro modo
de ser, com o tempo da vida fora da loquacidade e aceleração dos centros
urbanos e da lógica da competitividade e eficiência do capital. Assim, a grande
protagonista de Margeado é a natureza
– o tempo da natureza e sua geografia não apenas física mas como espaço humano que
preenche os modos de ser. Assim como a lama invade os rios, ela transborda pelo
rompimento da barragem e chega até o mundo. As máquinas rasgam o espaço
natural, por meio de motos, carros, ônibus, tratores. Um senhor empilha objetos
numa loja de concertos de equipamentos quebrados. O som das máquinas sufoca o
canto dos pássaros, até o momento que Dingue abandona sua moto e se refugia no
que ainda restou de sua família partida. O reencontro com a família partida
após a morte dos patricarcas funciona ao final quase como o fim de Intendente Sansho (1954), de Kenji
Mizoguchi. E a família poderia ser de negros pescadores ou de camponeses libaneses.
Ambos são refugiados esquecidos pelos sistemas hegemônicos de poder e pelo grande
capital – mas ainda assim resistem, juntando os cacos possíveis por meio de uma
afetividade ainda que precária.
Margeado não se apresenta como filme de
denúncia em torno de pautas ambientais urgentes mas, em vez disso, opta por
expressar sua vocação transcendente por meio de uma estética da delicadeza, em
que o desejo por um cinema de atmosferas sutis em torno de um clima de sugestão
e rarefação prevalecem sobre a estrutura macronarrativa e a composição
psicológica dos personagens. Sem nenhuma pressa, Zon costura à mão uma poética
muito particular, que parece nos fazer imergir num outro tempo. Assim, Margeado parece um corpo estranho no
cinema brasileiro de hoje, tão preocupado em refletir seu tempo histórico com tamanha
urgência. O tom poético de Margeado
talvez o faça se aproximar de filmes como Arábia
(2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, ou mesmo de Estrangeiro (2018), de Edson Lemos Akatoy. Mesmo diante da
tragédia, Margeado expressa a visão
de mundo dos vitimados mas sem espetacularização da barbárie mas em como os
modos de vida dos humildes trabalhadores permanecem ainda assim, em como é
possível permanecer humano diante da tragédia e da indiferença do Outro.
Nesse sentido, Margeado parece quase um filme eslavo ou
da Europa Oriental, no sentido de promover uma cosmologia das transformações do
interior rural e da improvável manutenção de outros modos de ser, por meio de
um formalismo não realista. Apesar de muito fincado na terra do seu tempo
presente, Margeado foge completamente
de uma vocação documental ou mesmo realista. É impressionante como, num
primeiro filme, Zon realiza um filme de complexa mise em scène, com planos
alongados que impressionam pela extrema beleza, poesia e precisão especialmente
dos seus movimentos de câmera. O desafio formal de Margeado está em integrar de forma orgânica o desejo de respirar
essa poesia do escorrer do tempo comum com a orquestração de uma escritura
fílmica rigorosa e precisa. Ou seja, em fazer o filme respirar o tempo da vida
ao mesmo tempo que o integra em meio a uma escritura formal controlada. Talvez seja
possível dizer que em alguns momentos essas apostas funcionam mais e em outros,
menos. Ou ainda ler o tom declamatório do elenco com uma vocação teatral ou até
mesmo literária que algumas vezes resvala para o tom explicativo. Me interesso
por Margeado muito mais pela construção
de uma atmosfera transcendente de sugestão e sutileza do que pelo seu arco
narrativo socioambiental. De todo modo, o desafio de construção de uma mise em scène
não realista é enfrentado de frente pelo diretor, sem medo dos riscos, sem medo
de errar, quase como uma carta de declaração de princípios - e isso é notável num cinema brasileiro de
hoje dominado pelas regras de negócio dos laboratórios e pelos estritos
recortes curatoriais. Não me lembro de outro filme brasileiro recente que apresente
movimentos de câmera tão expressivos, tão belos, poéticos e, ao mesmo tempo,
precisos – sem soar ostentatórios ou vazios. Mesmo nas suas imperfeições, Margeado é prenhe de um desejo poético
pela vida e pelo cinema. Mesmo diante do luto, é preciso permanecer se
deliciando com o gosto das goiabas tiradas do pé, enquanto o solo ainda
sobrevive colhendo frutos. Do rio à lama, da morte à vida, os movimentos de Margeado podem parecer deslocados ou
anacrônicos no tão pragmático circuito da vida e do cinema dos nossos tempos –
e esse parece ser o principal gesto de Margeado
dentro do cenário do cinema brasileiro pós-crise.
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