[ TIRADENTES2025] GIRASSOL VERMELHO

28ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES 2025

 

GIRASSOL VERMELHO

de Eder Santos



 

A 28ª Mostra de Tiradentes teve sua abertura com a primeira exibição pública de Girassol Vermelho, de Eder Santos. Um viajante misterioso (Chico Diaz) rompe com sua amada e faz uma viagem de trem. Subitamente, o trem para no meio da viagem em um local desconhecido. Quando o viajante desembarca e vagueia pela cidade, acaba capturado pelas autoridades do lugar por “fazer perguntas demais”. Atraído por uma mulher sedutora e misteriosa (Luiza Lemmertz), o personagem é capturado e submetido à prisão e sucessivos interrogatórios.

Um dos nossos maiores videoartistas, Eder Santos tem sua trajetória ligada às artes visuais, ou às artes plásticas, usando a expressão que o próprio autor utilizou ao apresentar o filme. E, de fato, o que mais salta aos olhos no filme é menos sua estrutura dramatúrgica e mais suas soluções formais.

Livremente inspirado na obra do também mineiro Murilo Rubião, Santos mergulhou de cabeça no universo fantástico do autor. Todo o filme é filmado em estúdio, sem cenas externas ou luz natural. Já começamos com uma despedida na estação de trem, mas com o avesso do cinema da observação do mundo dos Irmãos Lumière. Uma cena de despedida que poderia ser a de um melodrama do cinema clássico dos anos 1950 ou mesmo de Desencanto, de David Lean. Mas também não é isso. Se há uma concepção cênica e de entonação/declamação dos atores que tangencia o clássico, há também um nítido estranhamento que afasta o filme de qualquer proximidade com o realismo ou com a verossimilhança. Nesse sentido, as máquinas cumprem um papel primordial: o trem parece um trem de carga, e não de passageiros; seu interior, uma clara cena de estúdio com uma janela composta de chroma-key. A cena do interior do trem não é a dos Irmãos Lumiére mas tampouco é oriunda de um filme clássico como o início de Design for living, de Lubisch, por exemplo.

Quando o personagem de Diaz chega à cidade, o tom maquínico se exacerba. A cidade de estúdio está mais próxima de um Dogville do que das cidades cenográficas da Globo. Muita fumaça cênica reforça o tom de artificialismo. Diaz é levado para a prisão por máquinas que parecem guindastes humanos, ou tratores de um outro século.

A direção de arte e a fotografia primorosas reforçam a criação de uma atmosfera onírica mas ao mesmo tempo opressora, como se Diaz estivesse aprisionado em um laboratório humano, como um rato que mal tem direito a se expressar. Em especial, destaca-se a fotografia de Stefan Ciupek, diretor de fotografia alemão, que já trabalhou em filmes internacionais de grande orçamento, inclusive de Hollywood, como Dredd (Peter Travis), Quem quer ser um milionário?Extermínio: a evolução (ambos de Danny Boyle) ou Anticristo (von Trier).

Capturado pelo destino, contra a sua vontade, Diaz vai sendo cada vez mais engolido por um sistema tirano de poder que impede a livre expressão do indivíduo, que se vê impedido de fazer perguntas e de, em última instância, duvidar. Em nítida inspiração kafkiana, Diaz é preso acusado de um crime que ele não sabe qual é, e quanto mais ele busca saber as origens da acusação, ele chafurda na alienação de sua liberdade. Ao mesmo tempo, a estética do absurdo kafkiana ganha contornos políticos explícitos, quando um clima de ditadura brasileira se instaura, sugerido pelas roupas dos inquisidores e pela sua insistência em “delatar alguma pessoa”. O filme possui trechos esparsos que se assemelhariam a um interrogatório documental mas em tom de farsa, mostrando pessoas que identificam Diaz como o autor do crime, mesmo sequer vendo ou ouvindo bem. São as “pessoas do bem” que condenam por aparências, antes de provas. Assim, Girassol Vermelho se manifesta por uma clara alegoria política do Brasil de hoje, seja pela ascensão do totalitarismo dos governos de extrema-direita seja pela imposição da lógica sistêmica do capital, por meio da adesão a um ciclo maquínico. Os dois são regimes opressores: o primeiro, por uma macro/necropolítica, que impede perguntas; o segundo, pela implosão interna da criação, da liberdade e do amor.

Quanto ao amor, a personagem de Lemmertz surge como uma sereia que atrai o viajante para sua rede, mas, ao mesmo tempo, possui uma abordagem ambígua ou misteriosa que aponta para uma possibilidade de salvação diante do calvário.

Se estamos diante de um filme narrativo com uma robusta estrutura de produção, ao mesmo tempo Girassol Vermelho surpreende pela radicalidade de sua estrutura formal, pela busca da criação de atmosferas desviantes do realismo para mergulhar num clima onírico mas ao mesmo tempo sufocante e perturbador, reforçado pelo desenho de som – ruidoso, que também dialoga com o farfalhar sonoro das máquinas, fragmentando nossa percepção e causando perturbações sonoras, antes de uma zona de conforto. Ficamos diante de um experiência de embarcar num trem para um reino com regras próprias, um pesadelo incômodo. Mas, ao mesmo tempo, reside um clima de farsa, um certo humor, em vez de uma atmosfera radicalmente perturbadora. As reações corporais de Diaz, como a busca por seus óculos, sugerem às vezes para sua ingenuidade ou impotência, num leve clima circense. O filme, portanto, se equilibra nesse estranhamento entre a farsa de conotações políticas e a atmosfera de estranheza visual e sonora, num mundo confinado e maquínico. O tom de farsa confere ao filme uma leitura poética mesmo nos momentos em que o filme se aproxima da tortura, buscando, portanto soluções visuais de constrição física que se opõem à espetacularização da barbárie.

De alguma forma, penso que Girassol Vermelho revela um caminho de continuidade com  o longa-metragem anterior de Santos, Deserto Azul – e é curioso que ambos os filmes possuam cores primárias em seus títulos, quase opostas. Assim como Deserto Azul, várias das soluções de dramaturgia de Girassol Vermelho parecem bem menos sofisticadas em relação aos seus conceitos como peças visuais. Os diálogos e as situações engendradas pelo roteiro possuem bem menos potência do que o clima de estranheza construído pelas engrenagens cênicas. Ao final, num crescendo asfixiante numa grandemente orquestrada sequência em torno de uma mesa de jantar, com uma clara analogia à tortura, em meio à travellings circulares que reforçam a sensação de asfixia, Girassol Vermelho tem seu ápice num cenário esbranquiçado que culmina num plano-síntese, o que será o último do filme – um plano de difícil enunciação, que exprime a condição existencial desse homem aprisionado, que busca resistir fazendo perguntas a si mesmo e mantendo viva a chama do desejo, da dúvida e das nuvens – que agora não podemos mais ver, a não ser em nossa imaginação.

 

  

Comentários

Postagens mais visitadas