[TIRADENTES2025] CARTOGRAFIA DAS ONDAS
[COBERTURA DA 28a MOSTRA DE TIRADENTES 2025]
CARTOGRAFIA DAS ONDAS
de Heloisa Machado
Elemento típico do cinema
contemporâneo, as bordas entre criação e vida ganham outros contornos em Cartografia das ondas, de Heloisa
Machado. Um letreiro inicial já abre com o desafio do filme: vivemos para
narrar histórias. Aqui, dois amigos (a própria realizadora e o roteirista
Gledson Mercês) mergulham num processo de escrita de um roteiro, mas possuem
dificuldades para prosseguir devido a acontecimentos da sua vida. Precisam mudar
de cidade, trabalhar, criar os filhos... À medida que vivem, os acontecimentos
de suas vidas vão contaminando a escritura do roteiro. Estamos então num
diapasão totalmente diferente do hibridismo entre ficção e documentário ao
molde de filmes como Baronesa (2017),
A vizinhança do Tigre (2014) e O céu sobre os ombros (2010). No filme
de Machado, o desafio é moldar a escritura de uma narrativa ficcional de
contorno até certo ponto tradicional, com a escritura de um roteiro de
estrutura clássica, com cabeçalhos, rubricas e tudo o mais. No entanto, a vida
vai, de forma inesperada, contaminando a escritura desse roteiro clássico.
Essas relações ganham outro
significado quando percebemos que não se trata de mero dispositivo a priori,
mas que o próprio filme foi sendo gestado a partir dessa mesma lógica. Machado
pretendia realizar um filme de ficção mas os caminhos inesperados da vida fizeram
com que o processo de filmagem se tornasse atribulado, de modo que o filme durou
dez anos para ficar concluído. Ou seja, Cartografia
das ondas pode ser lido como o processo de gestação de um filme que não foi
concluído como inicialmente imaginado, para que as ruínas desse projeto
gerassem um outro filme. Gestação: palavra adequada para entrecruzar as
relações entre criação e vida propostas pelo filme. Machado gesta o roteiro
desse filme do mesmo modo como gesta sua filha Lis, que nasce durante esse longo
processo.
Há, portanto, um filme de ficção
dentro do filme, que surge da imaginação dos roteiristas no processo de escritura
desse roteiro. Uma prostituta negra (Indira Nascimento) se envolve com um
marinheiro (Julio Adrião). Grávida, é levada por Caronte para uma ilha habitada
por prostitutas depois que morrem, e onde nenhum homem pode viver. A mulher,
então, tem esse dilema de manter seu filho vivo nesse ambiente. O entrecho
desse filme-dentro-do-filme me lembra de Ieodo
– Korean Ghost Story (1979), de Choi
Sang-sik, um filme sul-coreano misterioso, episódio de uma série de TV, que
ganha ares metafísicos em torno de uma lenda local a partir de pescadores tragados
por uma ilha habitada apenas por mulheres. Mas no filme de Machado a história é
contada pelo ponto de vista feminino, e não de um pescador.
A menina-prodígio que passou tão
jovem em um concurso público precisa escolher seu caminho, para poder enfim gestar
sua filha e gestar o filme. É preciso, portanto, colher o tempo da espera, da
passagem da vida, da sensação de incompletude, de redefinir os cursos da vida e
da criação, e mergulhar num processo de autodescoberta que é também parte do
desconhecido. Sulcar o ventre para esperar o tempo da colheita: frutificar.
Caronte (interpretado pelo professor e cineasta Sérgio Santeiro) ou o Narrador
(voz de Antonio Pitanga) são elementos que funcionam como intermediários entre
o mundo dos vivos e dos mortos, entre o mundo do real e da criação, ou ainda,
entre os criadores-roteiristas e seus personagens. Cartografia das ondas é sobre esse misterioso entremeio, como as
ondas de um mar ou o fluido amniótico, que simbolizam o fluxo da vida, o
processo de criação e os ritmos indefiníveis da natureza.
Viver é narrar. Narrar histórias
de outros, que no fundo são histórias de si. Mas aqui não se trata de autobiografias
ou de autoficções: a vida interfere na criação não propriamente num
espelhamento direto entre a persona do autor e a psicologia de seus
personagens, mas o curso da vida promove bifurcações que criam fissuras no
próprio ato da criação. Como escrever se não se tem tempo nem para tomar banho?
Como escrever se é preciso preencher planilhas? Como escrever em dupla se se
está tão distante? Cartografia das ondas
examina a relação entre criação e vida jogando seu foco para um antecampo: os
criadores, acima de tudo, são pessoas que vivem em um mundo de necessidades concretas,
que precisam pagar contas, cuidar dos filhos. O filme é justamente sobre essa
lacuna, que o filme tenta preencher, aproximando suas longínquas margens, na
medida do possível, mas sempre tendo a consciência de que sua resultante é algo
incompleto, parcial, perecível, flutuante e instável. A resultante – o filme, a
filha, enfim, a vida – é o acordo de forças possível diante do processo da vida,
diante do fluxo das marés, incontroláveis. No fundo, o projeto de Machado é um
ensaio sobre o que restou das ruínas de um processo de gestação, em que o
projeto original tornou-se rastro de um sonho vivido pelas bordas da urgência
da vida. O filme-dentro-do-filme é como se fosse um sonho vivido acordado, como
a própria vida. Algo que precisa ser concluído e, como a barca do filho
recém-nascido que é devolvido ao mundo dos vivos, num movimento contrário ao de
Caronte, precisa sair do seu ventre-papel do imaginado para afinal tornar-se
carne, tomar vida própria, e ser afinal expurgado, para fora de si.
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