[FESTBRASÍLIA] YÕG ÃTAK: MEU PAI, KAIOWÁ
[COBERTURA DO 57º FESTIVAL DE BRASÍLIA]
Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá
de Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna
AINDA ESTAMOS AQUI
A
princípio, este filme se apresentaria como a busca de Sueli Maxacali, uma das
realizadoras do filme por seu pai, arrancado de sua comunidade por conta da
Ditadura Militar, e que conseguiu reconstruir sua vida num paradeiro distante,
na comunidade Kaiowá. Quarenta anos depois, o filme acompanha a aproximação
dessa família partida.
Conhecemos ainda
muito pouco os efeitos da Ditadura sobre as famílias brasileiras, em especial,
as famílias de pouca visibilidade econômica e social, e ainda mais sobre os
povos originários. Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é o outro lado de Ainda estou
aqui. É como se os Maxacalis dissessem que também durante a Ditadura, mas
independentemente dela, sempre, durante todos os tempos governados por brancos,
os Maxacalis gritassem “ainda estamos aqui”. O plural é utilizado não por
acaso.
Um dos dispositivos
mais conhecidos do cinema contemporâneo é o cinema de busca ou o cinema em
primeira pessoa. No entanto, Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá escapa de boa parte dos
recursos conhecidos por esse “quase-subgênero”: não há “dispositivo-de-busca”,
não há “filme-de-busca”, não há “cinema-em-primeira pessoa”.
Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é um processo coletivo mas
cuja direção é assinado por quatro pessoas: além de Sueli e Isael Maxacali,
assinam o filme Roberto Romero, Luisa Lanna – dois não indígenas que atuam
nessa comunidade. Como é o papel deles no filme? Roberto no debate explicou com
veemência que, mesmo sendo um antropólogo, destesta “filmes-de-antropólogos”,
que seu papel como antropólogo é ser um intermediador, mas que, antes de ser um
antropólogo é uma pessoa que convive com a comunidade durante 15 anos, e cuja
atuação vai muito além de um projeto de filme. Ou seja, a antropologia ajuda
mas ela não é a chave de nada; os povos poderiam se expressar sem a participação
de um antropólogo ou de qualquer outra pessoa, etc. Mas, estando lá envolvido,
evidentemente, ele pode contribuir.
Tudo isso é muito nítido. É um filme que só pode ser
feito com muito tempo de convívio. O tempo é uma das forças motrizes mais fortes
do filme. Há um momento em que uma pessoa diz que não adianta ligar uma câmera
e esperar que um indígena vá falar a história de sua vida e de suas opressões
em 10 minutos. É preciso dias, meses para que não apenas a pessoa se sinta
confiante para se expressar mas que é preciso mesmo esse tempo para que todas aquelas
informações e sentimentos possam decantar para que possam ser adequadamente
externalizados. O filme revela como o cinema pode ser esse indutor que estimula
esse tempo, que é no fundo o tempo da colheita, o tempo da cicatrização das
feridas, o tempo da cura, do amadurecimento mas também o tempo místico da
própria vida.
Assim, esse filme consegue produzir efeitos de
presença por uma sabedoria que é saber se colocar diante das pessoas e das
situações porque as pessoas a filmar estavam completamente imantadas com essa
sensação de pertencimento. Um dos grandes desafios do cinema contemporâneo e
das famosas dobras entre documental e ficção (prefiro entre o que existe previamente
à presença da câmera e o que é criado quando a câmera dispara) é encontrar uma
estratégica que acenda uma fagulha quando a câmera é ligada, ou seja, que as
situações engendradas ganhem potência diante de uma câmera. Neste filme, toda
essa questão que é bem complexa é resolvida de uma forma intuitiva, bela e de
grande sabedoria. As situações ganham potência não pela suposta elaboração/sofisticação
do dispositivo mas simplesmente porque os realizadores sabem esperar o tempo da
colheita e estão completamente imersos no contexto
geográfico-social-político-afetivo que os encontros e as situações
proporcionam.
Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá não é um filme-de-denúncia
e oferece poucas informações de contexto sobre os fatos em si. Assim, consegue
ir além mesmo de filmes tão potentes e importantes quanto Martírio ou Corumbiara.
Comparando ambos, mesmo que importantíssimo, sentimos que Martírio ainda é um
filme narrado por brancos, visto de fora.
A questão, portanto, não é se o filme é feito ou não
por brancos, mas como a participação branca gera encontros que possam ativar
ressonâncias entre as identidades indígenas, que são móveis. Não existe mundo
purificado, uma vez que a câmera (e o cinema) é uma tecnologia branca, e que o
próprio celular foi um meio que possibilitou o contato e reencontro entre pai e
filha. Não existe mundo purificado: as próprias comunidades indígenas vão
precisar lidar com suas diferenças, entre o povo Maxacali e o povo Kaiowá, o
compartilhamento de memórias, afetos mas também de disputas. “Simplesmente dar
uma câmera a um indígena para que ele filme o seu povo não resolve o problema”,
como foi dito no debate.
Por outro lado, o reencontro entre pai e filha não é
filmado como a lógica da reconciliação redentora ou do possível perdão (como no
novelesco A filha do palhaço) nem mesmo no acerto de contas dolorido e partido
(como no ótimo Os dias com ele). O que está em jogo, acima de tudo, são as
cosmogonias indígenas e a possibilidade de pensar a permanência de um povo e um
território mesmo com o movimento do mundo.
Nesse sentido, o plano que abre o filme é de
antologia. Num plano que poderia parecer de retrato (como os filmes da Comissão
Rondon), subverte-se a lógica da catalogação de manual ou da retratificação
burguesa para alargar o pensamento sobre o pertencimento a uma comunidade.
Outro exemplo é no bonito plano em que uma placa de obras de Teófilo Otoni é
coberto por uma tinta amarela em que surgem as palavras “aldeia, escola”. Apropriar-se
desses rastros brancos, não os destruindo mas cobrindo-os com nova roupagem –
algo tão belo e que me lembrou do final de Esse amor que nos consome, de Allan
Ribeiro.
Voltar a se reunir. Conseguir falar sobre o passado.
Lembrar-se não apenas do massacre, mas dos cantos. Poder cantar os cantos do
lugar onde não mais se está. Encenar de forma justa alguém que tenta, com muito
esforço, voltar a se expressar. Esses são desafios éticos que o filme busca
traduzir em termos estéticos, a partir de uma distância e de um tempo que
respeite a cicatrização dos processos, mas abrindo-os com um sentido profundo
de presente. Sem metalinguagem, sem penduricalhos, sem dispositivos.
Encontrar situações com potência diante de uma
câmera e apostar no fragmento como momento fecundo da potência do instante. Na
verdade, esse filme radicaliza questões tão discutidas do “cinema de fluxo”
contemporâneo mas o faz com tamanha sabedoria e simplicidade que nos faz
alcançar a epifania. Os planos são longos, alongados, não por um preceito
estético, mas porque as situações pedem que possamos observar um pouco mais. As
conversas são filmadas com tamanha sabedoria e acolhimento que até parece que
estamos lá.
Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá abre tantas possibilidades
de leitura diante do atual estado de coisas do nosso contexto social/político e
também diante do cinema brasileiro – tão pragmático, tão perdido... Sinto que
esse filme, de formas muito discretas e misteriosas, sugere um outro lugar de
encontro, para as possibilidades do cinema se debruçar, de forma mais ética e
digna, sobre os desafios de nosso tempo. A sabedoria e a delicadeza desse filme
são uma epifania assustadora.
P.S.: não resisti e tirei algumas fotos sorrateiras da grande tela do Cine Brasília, onde sentei bem na segunda fileira. Fiquei extasiado, e poderia ter tirado muitas outras.
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