[FESTBRASILIA] SUÇUARANA

[COBERTURA DO 57º FESTIVAL DE BRASÍLIA]

SUÇUARANA

de Clarissa Campolina e Sérgio Borges

 


Para quem conhece o trabalho prévio dessa dupla de realizadores, Suçuarana é a continuidade de um longo caminho com muitas léguas e anos de estrada em torno de uma pesquisa cinematográfica. Em meados dos anos 2000, o Coletivo Teia foi um dos mais importantes agentes do cinema contemporâneo brasileiro. Em 2010, o prêmio de melhor filme de O céu sobre os ombros, dirigido por Borges, neste mesmo Festival de Brasília foi um dos mais importantes marcos dessa geração de realizadores. Trecho, realizado por Campolina e Helvécio Marins JR., venceu a categoria de curtas em Brasília 2006. Girimunho, dirigido pela mesma dupla, foi exibido em Veneza e outros festivais.

Não que Suçuarana simplesmente repita ou dilua o já visto nesses filmes anteriores, mas retoma alguns princípios para seguir adiante pela estrada. O que me encanta nesse filme é justamente perceber o percurso de amadurecimento de tendências tão caras ao cinema brasileiro contemporâneo. E, em especial, que o cinema da Teia, que sempre foi conhecido por suas invenções formais e diálogo com as artes visuais mineiras, foi aprofundando, acima de tudo, um princípio ético: olhar com delicadeza personagens em posição de vulnerabilidade, um olhar renovado para as paisagens sociais do interior mineiro, mas sem saudosismo nem exploração da miséria, mas apostar numa afetividade ainda que precária. É incrível perceber como a agora tão consolidada tendência de amalgamar documentário e ficção se encontra articulada de forma tão orgânica, a simbiose entre atores profissionais e pessoas do local, e especialmente como a paisagem se integra à dramaturgia. O trabalho de câmera e foto de Ivo Lopes Araújo, outro antigo colaborador, confere ao filme esse misto de aspereza asfixiante e ao mesmo tempo uma doçura poética em torno dessa protagonista. Tanto a captação (de outro grande colaborador, Gustavo Fioravante) quanto o desenho de som de Pablo Lamar comprovam a sofisticação das paisagens sonoras oferecidas pelo filme. A bela atuação de Sinara Teles é a cereja desse bolo.

Depois, a Teia se dissolveu, os coletivos se dividiram, o cinema brasileiro virou outro, bem como o próprio cinema mineiro. Esses diretores fizeram outros filmes, adentraram por outras veredas. Mas há algo ali que insiste em permanecer. Vejo Suçuarana por esse prisma: a continuidade de uma longa pesquisa de realizadores que insistem em permanecer nessa estrada, ainda assim.

O que permanece do espírito da Teia no cinema brasileiro de hoje? É difícil dizer. Não imagino o que os jovens críticos influenciadores com seus 20 anos de idade possam achar desse filme. Mas quando Chibo foi exibido um pouco antes, suspeito que, de formas misteriosas, há algo que ressoa no tempo presente.

Um tempo atrás escrevi que Inferninho era o último filme do Alumbramento, ainda que este já estivesse dissolvido (veja aqui). Tenho a mesma sensação quando vejo Suçuarana. Pois de alguma forma, esse filme possui renonâncias com a antiga parceria entre Alumbramento e Teia, o que por si abre um conjunto de relações com um certo cinema brasileiro da década de 2010.

É bonito ver Suçuarana tantos anos depois de Trecho e O céu sobre os ombros e perceber que essa equipe permanece criando junta. E justamente num ano em que venho ao festival lançar meu livro “Das garagens para o mundo”, que promove um amplo panorama dessa mesma geração.

Venho escrevendo que, diante de um momento de crise, o cinema brasileiro retorna ao espírito do “cinema da retomada” (veja aqui ou aqui). Ainda mais nesse contexto, é belo e surpreendente perceber que, de forma inesperada, a Teia permanece viva.

 p.s.: percebo que Suçuarana, para além desse lugar-utopia que a personagem procura, é também uma espécie de onça-parda ou puma, um animal solitário que caminha especialmente à noite, que sobrevive em paisagens profundamente alteradas pelo homem. Com isso, percebo que talvez Suçuarana seja Dora, e que o título remeta a esse lugar-mítico que é a própria personagem – paisagem física e afetiva como espelho de si. E, ainda, que o filme, tão impregnado de uma conotação mística da natureza, possa ser visto como um encontro entre um cão e uma onça-parda.

p.s.2: Ou talvez a Teia seja aquele cachorro, que teima em permanecer por ali mesmo depois da despedida, face-dupla dessa onça-parda e que ao mesmo tempo lhe mostra o caminho a prosseguir.

 


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