DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA

DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA

de Robert Bresson

 



É um enorme desafio para quem resolve – sabe-se lá porque – dedicar a sua vida a pensar e escrever sobre cinema, falar sobre um filme tão precioso quando esse filme do Bresson. Tanto já foi escrito e pensado sobre esse filme... Escrevi então alguns simples apontamentos.

Vi esse filme há muito tempo, primeiro em VHS na saudosa locadora Polytheama, do Julio Cesar de Miranda, depois em 16mm na Cinemateca do MAM. Agora, revendo-o depois de 20 anos, percebo que minha impressão sobre ele permanece exatamente a mesma. Talvez eu tenha ficado tão tocado porque desde quando eu o vi muito jovem eu sempre me identifiquei muito com esse personagem. Sinto como na época em que tive que assumir o posto de direção do curso na universidade.

Fico muito tocado em como Bresson narra, com tanta sobriedade, com tanta serenidade e tamanha lucidez, o fracasso de um indivíduo bondoso mas frágil diante da sociedade infame.

O padre ama mas seu amor é fraco diante do mundo, é impotente e estéril. Frágil, ele não consegue expandir o amor além de si mesmo, e implode em solidão. O filme é sobre seu fracasso, e ninguém é culpado. O câncer no estômago cresce dentro dele, e é alimentado pelo vinho que não se transforma em sangue nem a hóstia em carne. “Deus me abandonou. Disso tenho certeza.”

O velho pároco diz que agora os novos padres são apenas “meninos de coral”. O jovem padre é impotente diante do mundo, porque não consegue verdadeiramente amar. Seu amor é um amor de manual, e não o verdadeiro amor, que é contaminado pelo mundo. O padre não consegue viver, ele não sabe amar. Como ser o líder espiritual de uma comunidade se não se consegue amar?

 O diário desse filme do Bresson tem um papel quase oposto ao de Arábia. Narra do ponto de vista não de um operário mas de um padre. Nada de imagens “poéticas”; nada de romanesco.

Bresson resolve o filme com fades e fusões, com uma voz over didática “ela apontou para uma cadeira”. O filme também é sobre a luz. Digno de atenção também são os travellings, especialmente os carrinhos para frente até o seu rosto. Seu rosto é iluminado com seus grandes olhos mas também por sua afasia. Esse filme, como vários outros, é sobre a expressiva não expressividade dos atores/modelos de Bresson.

O didatismo franciscano da gramática de Bresson é uma forma seca e austera de buscar a transcendência, e dialoga intimamente com o próprio modo de ser de seu personagem. O filme é um diário porque, além de uma mera sucessão de casos cotidianos, é uma reflexão profunda sobre sua existência.

Eu fiz uma adaptação desse filme, mas, em vez do livro de Bermanos, optei por adaptar o livro da Rachel Pacheco, a Bruna Surfistinha. Chamei de “Diário de uma prostituta” (ver aqui). Sempre achei que as palavras “padre” e “prostituta” tinham o mesmo radical etimológico mas depois de um tempo percebi que eu me enganei rs.

 

“Se você ama, não deve se colocar além do alcance do amor”.

“Uma hora antes, minha vida parecia estar em ordem, cada coisa em seu lugar. Você veio e não deixou sobrar nada.”

“Em seu rosto, eu esperava ver um sorriso. Mas ela não estava sorrindo.”

“As pessoas não odeiam sua ingenuidade, elas se protegem disso.”

“Aquela estranha ternura.”

[A página foi arrancada.]

“A terrível presença do Divino em cada instante de nossa pobre vida”. “Um verdadeiro padre nunca é amado.”

 

É preciso ter fé para ver esse filme do Bresson, para que nos deixemos iluminar por sua sóbria melancolia.

Um filme sobre o amor, e sobre a presença e a ausência de Deus. Mas também totalmente diferente de Luz de inverno, do Bergman.

A epifania nesse filme acontece nos momentos de uma melancolia dilacerante apesar de doce e serena. Há até um certo sensualismo em como a câmera se aproxima do rosto do jovem padre, que treme.

            O cinema de Bresson, sempre fica ao lado do padre. Não procura o espalhafato, mas a discrição, o sublime e a graça. Viver assim, filmar assim, com tamanha modéstia e tamanha lucidez, é um ato de coragem. O cinema de Bresson, sempre fica ao lado do padre – mas sem nunca romanceá-lo, compreendendo sua profunda fragilidade e seu fracasso (é só compará-lo com Torcy).

A austeridade do estilo de Bresson está longe de tornar o filme uma mera escrita semiautomática, mas ao contrário, faz do filme algo profundamente tocante.

             Essa epifania sensualista o Bresson vai abandonar totalmente a partir de Mouchette.

“O que importa? Tudo é graça.” 

*   *   *

                Os planos de rostos estão entre os mais impressionantes já vistos. A atuação do Claude Laydu é justamente divina. Vi o filme no momento em que lia Ética e infinito, do Lévinas – e fiquei ainda mais tocado. Gosto muito da filosofia ética do Lévinas e como ele analisa a importância do rosto. Quando vemos o rosto do outro, reconhecemos não o Ser (a ontologia, a identidade) mas o infinito – o que só é possível, a partir da alteridade. Lévinas dizia: a humanidade surge quando nos tornamos capazes de nos sensibilizar com a fragilidade do Outro. A força que emana dessa fragilidade por meio do reconhecimento dos rostos – uma forma justa de ver os desafios desse filme do Bresson.

Me lembrei também de um “velho” e maravilhoso livro – esquecido porque supostamente “velho” – do Henri Agel: O Cinema tem alma?
















 

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