ESTRANHO CAMINHO
ESTRANHO CAMINHO
de Guto Parente
É instigante assistir a Estranho caminho logo em seguida a A filha do palhaço. Primeiro, por serem ambos filmes realizados num período muito próximo, de dois realizadores cearenses que se conhecem muito bem, são amigos e já trabalharam juntos, em projetos do Coletivo Alumbramento, inclusive em longas. Pedro Diógenes e Guto Parente tiveram várias experiências em comum, e compartilharam do mesmo “romance de formação”, egressos da Escola de Audiovisual da Vila das Artes e integrando o Alumbramento. Mas poucos ainda vão se lembrar que mesmo antes da Vila das Artes e do boom do “novíssimo cinema cearense” após o impacto de Vilas Volantes, “Pedrinho” e “Guto” já faziam seus experimentos fílmicos ainda adolescentes como parte da Artéria Experimental. Se podemos nos lembrar de Cruzamento (2007) (ver aqui), curta da Vila dirigido em conjunto pelos dois, é possível recuar ainda mais para resgatar Bolinho leve frito feito com farinha e ovos (2006) (quem ainda se lembra desses filmes?).
E também, claro, devemos lembrar de Inferninho
(2018), o “epitáfio” do “cinema de afeto” brasileiro (veja sobre isso aqui), o filme que
corrobora o fim do Alumbramento, dirigido por ambos, Pedro e Guto.
Afinal, o que resta após o fechamento do Inferninho?
O segundo ponto em comum – agora não relacionado ao
contexto mas aos filmes propriamente ditos – reside no fato de ambos os filmes
serem narrativas de conciliação entre um pai e um/a filho/a distante, e dos
ruídos dessa relação.
Mas, para além das proximidades, o que me interessa
mais focar neste texto são as suas diferenças. Em texto anterior (veja aqui), pude
aprofundar minha ampla decepção com o filme de Diógenes, em relação ao papel
conservador novelesco e até certo ponto apelativo da condução narrativa da relação
entre pai e filha.
Já aqui no filme de Parente, estamos numa ambiência
bem mais complexa.
Primeiro, a relação entre pai e filho surge com
muito mais nuances, menos romantizada, de forma mais complexa. As diferenças
entre ambos são postas não apenas pelos diálogos mas por outros elementos
complementares como os silêncios, o corpo dos atores, a arte (cenografia,
objetos) e a disputa por espaços dentro da casa, etc. A reaproximação entre
ambos é mediada pela posição ambígua, fechada e ambivalente do próprio pai.
Segundo, o filme de Guto tem muito mais potência
cinematográfica. A decupagem inteligente joga o filme para frente, criando
camadas e elipses muito bem engendradas. O filme possui toda uma preocupação em
criar uma ambiência ambígua que desloca o filme do tom de realismo direto, o
que dialoga diretamente com o próprio momento da pandemia e seu tom distópico.
Nesse sentido, há um terceiro ponto. Acho admirável
a forma como Guto Parente vem encontrando para jogar sua filmografia para frente.
Sabemos o quanto é difícil e improvável um cineasta brasileiro independente,
fora do eixo RJ-SP, manter uma continuidade em sua filmografia. Nesse sentido,
busco aproximar Guto Parente de Petrus Cariry – dois cineastas da mesma geração
que curiosamente possuem muito em comum, apesar de não serem tão próximos.
Estranho caminho tem muito em comum com A praia do fim do mundo (veja aqui) – e curiosamente
ambos foram produzidos a partir do mesmo edital da Lei Aldir Blanc, como filmes
de baixo orçamento de produção rápida. E ambos são filmes que podem ser vistos
isoladamente mas devem ser considerados como parte de uma pesquisa cinematográfica,
que cada diretor vem desenvolvendo e aperfeiçoando lentamente. É possível fazer
toda uma relação de Estranho caminho com filmes anteriores de Parente, e entre
essas relações, um ponto me interessa em particular: engendrar um método
particular, uma forma possível, de fazer um filme com potência cinematográfica
a partir do que se tem. Estranho caminho é um filme pequeno, entrincheirado, e
é formidável o conjunto de soluções cinematográficas (por exemplo, a decupagem)
para que um filme como esse seja possível.
Por outro lado, ao mesmo tempo, nesse filme aqui, e ainda
que a própria pandemia contribua para o enclausuramento da narrativa, outros
elementos, e especialmente a cidade, entram de forma mais criativa, expandindo
o universo do filme, talvez mais do que outros pregressos do diretor. (Guto até
já tentou em curtas como O saco azul ou Passos no silêncio expandir sua
gramática mas considero que seus filmes mais expressivos, mesmo os curtas, se
passam em lugares fechados, com personagens fechados). Ao mesmo tempo, Guto vem
sentindo cada vez mais uma necessidade de arejar sua narrativa para alcançar
outros públicos. É claro esse movimento de Pérola/Ezequiel para Canibais/ECaminho.
Mas o desafio é promover esse movimento sem abandonar a premissa do cinema
contemporâneo, da busca de ambiências mais ambíguas e sutis, e, no caso de
Guto, essa pesquisa de um diálogo com o fantástico – algo que até poderia
aproximá-lo de Petrus Cariry, retomando ao início dessa seção do texto. E que
também nos remete às tendências de ensimesmamento – ponto que trabalhei bastante
no livro que escrevi sobre o Alumbramento (ver aqui) e que até certo ponto são comuns aos
dois diretores. Petrus e Guto vêm tentando escapar, cada um à sua maneira, das
suas naturais tendências de ensimesmamento.
Pois aqui há uma dimensão humana que talvez seja
única levando em conta a trajetória do realizador: esse reencontro entre pai e
filho. Reencontro cheio de reentrâncias, de dificuldades e de certo
enfrentamento direto: o pai não parece querer muito o filho de volta para sua
vida. Talvez o movimento seja mais o do filho em direção ao pai, do que do pai
em relação à filha (como no caso de A filha do palhaço). O movimento não é de
forma alguma o gesto católico de o filho perdoar o pai pelo seu abandono. Aos poucos,
vamos entrando no mundo misterioso e fechado (por dentro) do pai, ao qual, ao
final, não temos nenhum elemento conclusivo mas apenas pistas esparsas que não se
encaixam plenamente. Ou seja, mais do que o caminho do perdão e da
reconciliação, o pai permanece para sempre sendo um mistério que o filho nunca
alcançará. Parece que a única forma que os dois tendem a ter um gesto de afeto
é por meio de um filme (o filme que o filho finalmente apresenta para o pai).
Quando Guto torna seu jovem protagonista um cineasta experimental, mais que um
alter ego, esse gesto amplia as leituras narrativas, pois a realidade e a
criação se fundem num ambiente fantástico e febril, energizado pelo cenário
pandêmico. Devemos observar que o próprio início de Estranho Caminho insere
(digitalmente rs) ranhuras na imagem como o típico efeito da película 35mm.
Por fim, para não alongar ainda mais este texto, só
gostaria de fazer um senão, relativo ao desfecho da obra (lá vêm spoilers rs). O
filme nos lança num criativo curto-circuito sobre o realismo do encontro e do
convívio dentro do apartamento do pai. O apartamento é uma cápsula atemporal,
quase como em Ezequiel, e o filme realizado pelo filho é quase aquela explosão
surreal do terço final de Ezequiel. Mas, ao final, o pai morre, e vamos ao
enterro. É quando o filho finalmente encontra de fato o seu pai – ainda que ele
perceba que é tarde demais. Ou talvez não o seja. O filho vai ao cemitério e,
diante da lápide, enuncia a frase bressoniana que remete ao título do filme.
Ele declara seu amor ao pai e diz que sempre quis que um filme seu tivesse essa
frase. Esse é certamente o momento mais solene do filme, corroborado pela grave
trilha sonora. É um enterro, uma despedida que se revela um encontro, diante da
morte. Mas é como se essa declaração diante do pai só pudesse ser dita por meio
do cinema. É curioso que diante de um momento tão grave, diante do túmulo do
próprio pai, o personagem-realizador se lembre do cinema. Aqui, é diferente dos
filmes do Paul Schrader (ver aqui), que se remetem explicitamente ao célebre final de
Pickpocket (ver aqui) num filme de conotações metafísicas religiosas, em que os personagens
de fato descem aos porões do mundo para só então compreenderem o que é o amor e
que não estão sós. Há algo fundamental nesses filmes: eles são sobre o encontro
com o outro, sobre o amor. No final, o personagem do filme de Parente acaba com
o cinema. E o caminho que ele percorre para encontrar o pai, ainda que permeado
pela pandemia, é muito mais light do que os rincões de alma percorridos por
Bresson e Schrader. O filme de Parente não desce ao inferno para só então ser
salvo (O final de Rosetta sim é uma bela homenagem ao final de Bresson, ver aqui). Ao
fazer essa referência a Bresson de forma tão ingênua, o personagem demonstra
que ainda é uma criança, sozinha e despreparada diante do mundo. Que cinema
então esse personagem pode vir a fazer? Sintoma talvez de toda uma geração de
garagem que tenta encontrar seu lugar no mundo, e acaba flutuando em suspensão
diante da água, quase como em Elena, de Petra Costa (não ver aqui rs).
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