FOLHAS DE OUTONO
FOLHAS DE OUTONO
Kuolleet lehdet, 2023
Aki Kaurismaki
Dois
minutos já são suficientes – talvez até mesmo um único plano – para que
possamos reconhecer que se trata de um filme de Aki Kaurismaki. Os traços
estilísticos da obra desse notável diretor finlandês são quase imediatamente
reconhecíveis: o universo dos proletários, o humor keatoniano dos rostos
impassíveis, a iluminação artificial cortada com cores frias, etc. Dados os
pressupostos do chamado “cinema de autor”, esse é (pelo menos como é considerado)
“o melhor dos mundos”: o sucesso de um autor está justamente em estabelecer uma
marca distintiva original tão forte que funcione como um selo que o destaque
diante da enxurrada de filmes disponíveis para o espectador nos mais diversos
canais.
Kaurismaki,
portanto, é um dos grandes autores do cinema contemporâneo. Seus filmes
estabelecem um olhar humano para seus personagens proletários que tentam
enfrentar a solidão buscando, ainda que timidamente, amar. A originalidade do
olhar de Kaurismaki é que ele não é um Ken Loach: seus dramas humanistas
sociais não possuem uma estética realista ou naturalista mas a aposta no artificialismo
transborda a contribuição de sua mise en scène como parte de um jogo formal com
regras próprias.
Dizem
que os grandes artistas são aqueles que estão continuamente a refazer a mesma
obra. Mas, ao mesmo tempo, tudo isso pode ser uma grande armadilha. O cineasta
pode se instaurar numa certa zona de conforto, e se contentar com apenas
repetir ou prolongar sua pesquisa estética. O grande desafio da função autor é
nunca se repetir como apenas diluição de um “programa estético” já estabelecido
mas estar continuamente a ampliar seu repertório, pois, afinal, “o tempo não
para” e o mundo está continuamente a girar. Senão a obra do artista é mera
degeneração ou pastiche de si mesmo, obra natimorta cuja função é apenas manter
em movimento meramente inercial a roda do mercado do capital do cinema de arte.
Me
parece esse ser o grande desafio atual do cinema do Kaurismaki – e não apenas
dele. Para quem conhece a obra de Kaurismaki, Folhas de outono é uma obra de
maturidade, que comprova como Kaurismaki domina plenamente os recursos de seu
estilo, mas, ao mesmo tempo, é um filme acomodado que avança muito pouco dentro
dos seus domínios.
Se
esse filme “acomodado” de Kaurismaki está entre os melhores do ano de 2023, é
um sintoma nítido não apenas dos descaminhos do mercado do cinema de autor
europeu contemporâneo mas dos impasses e das encruzilhadas do nosso próprio
mundo - da falta de coragem e de perspectivas para romper com os rumos
implicitamente impostos pelo capital. Ou seja, um Kaurismaki padrão ainda é melhor
que a grande maioria dos produtos que invadem nosso mercado!
Dito
isto, estamos mais uma vez diante do brilhantismo dos tempos e do olhar humano para
personagens que parecem ter poucas perspectivas diante de um regime de trabalho
que os trata como mera mercadoria de pouco valor. O humor no cinema de Kaurismaki
tenta ser uma chama cálida, uma espécie de brisa discreta de afago morno diante
de um contexto social e humano gélido. Mas Folhas de outono não é Ironweed.
Kaurismaki não quer fazer um mergulho no submundo, mas propor uma fábula leve e
acolhedora. A escolha pelo romantismo clássico é uma aposta por um consciente
anacronismo. O humanismo de Kaurismaki é ingênuo – a aposta pela ingenuidade é
clara e muitas vezes comovente: o amor e o afeto são as únicas chamas possíveis
diante de um mundo indiferente. O risco é que o contexto social seja
ingenuamente encapsulado pelo “universo Kaurismaki”, como uma redoma de vidro
fechada por dentro. Não é à toa que o cinema neste filme entre com plena função,
recheado de cartazes que nos remetem a uma experiência de cinefilia quase em
extinção na nossa atual era dos streamings, da inteligência artificial e das
redes sociais. Kaurismaki dá as costas a esse mundo contemporâneo, satisfeito
em desfilar seu mundo tão pacientemente construído por meio de um estilo
desenvolvido com muito esmero nas últimas três ou quatro décadas.
O
plano final é a síntese desse discurso. Uma autocitação de Chaplin – cineasta produtor
que também lutou como pôde contra os avanços da modernidade e promoveu uma
aposta radical no anacronismo e na ingenuidade. Mas mesmo Chaplin não se
acomodou ou se repetiu – vejam, por exemplo, o extraordinário Monsieur Verdoux.
Nesse plano final, os personagens precisam continuar caminhando, sem se cobrar
muito, sem esperar muito do futuro, a não ser continuar caminhando (uma cópia
consciente do plano final de Tempos Modernos, um filme explicitamente
anacrônico, uma aposta anacrônica contra o cinema sonoro, e um libelo contra a
opressão do trabalho). Um plano profundamente lírico mas que também pode soar
um tanto reacionário (antibrechtiano). É preciso observar as contradições e os
impasses do cinema de Kaurismaki – esse grande autor pelo qual particularmente tenho
tanta admiração a ponto de “copiar” seu estilo em um dos meus curtas – como sintoma
da crise da função autor e da necessidade de romper com nossas zonas de
conforto para que possamos avançar. Em suma, considero uma pena que um artista
tão delicado e atento pelo desafio humano do mundo e do cinema como Kaurismaki não
consiga perceber que é preciso avançar. Ou, dito de outra forma, a acomodação
expressa o desencanto de Kaurismaki - seu
pessimismo e sua desesperança, não apenas no mundo do trabalho mas sobretudo no
cinema. Não chega a ser nocivo, é apenas triste que um dos nossos grandes
artistas não consiga contribuir mais.
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