RETRATOS FANTASMAS
RETRATOS FANTASMAS
de Kleber Mendonça Filho
Assim como Retratos Fantasmas é dividido em três partes, vou utilizar uma estrutura análoga ao filme para apresentar minha crítica.
1ª
parte: O DIÁRIO AFETIVO. Não costumo buscar muitas informações sobre um filme
antes de vê-lo. Assim, tive a impressão de que Retratos fantasmas seria um documentário
sobre as salas de cinema no Centro de Recife. É claro que ele também é isso,
mas o primeiro aspecto que me chamou a atenção no filme é sua estrutura em
torno do cinema em primeira pessoa. Vejo Retratos fantasmas, acima de tudo,
como uma grande homenagem de Kleber à sua mãe. Na primeira parte do filme, num
tom até certo ponto bastante atípico em relação ao cinema de Kleber, vemos o
próprio realizador narrar, em primeira pessoa, seu cotidiano afetivo, em torno
da casa em que a família morava, da vida do bairro de Setúbal e de sua formação
como cineasta, uma vez que vários dos seus filmes foram rodados no interior de
seu próprio apartamento ou nas ruas de Setúbal.
Vejo
que a homenagem à sua mãe se expressa não simplesmente na camada direta de
diário íntimo mas especialmente no seu desejo de história, uma vez que a mãe era
uma historiadora. Seu desejo de história se expressa pela inclinação em analisar
uma trajetória de mudanças ao longo do percurso do tempo, mas não meramente no
campo descritivo mas sobretudo por meio de um pensamento crítico. A perspectiva
do filme sobre a história é bastante contemporânea, uma vez que, para além dos
dados biográficos ou marcos temporais mais clássicos, o filme procura
apresentar para o espectador uma experiência, entrecruzando o pessoal com o
coletivo, o íntimo com o social.
Por
um lado, Kleber revela aspectos confessionais e expositivos de sua intiimdade
familiar, baseados na narração (na voz do próprio realizador), que funciona
como eixo estruturante de todo o filme. Mas, claramente, Retratos Fantasmas não
é uma mera autobiografia de Kleber e de sua família mas é especialmente sobre
questões sociais/coletivas, como o cinema e a cidade do Recife. É notável como o
filme estrutura uma relação orgânica entre o micro e o macro, entre o indivíduo
e o mundo, entre as questões pessoais e coletivas. Desse modo, fico pensando
nas proximidades e diferenças entre Retratos Fantasmas e Democracia em
vertigem, e queria encerrar essa primeira parte com uma provocação: certamente,
Retratos Fantasmas é muito mais bem-sucedido como filme político do que o filme
de Petra Costa.
2ª parte: O AMOR AO CINEMA. Aspecto
central no filme, mola mestra em torno do amadurecimento do cineasta, é sua
ideia de amor ao cinema. Mas quero apontar para um aspecto: em geral, quando
cineastas falam de seu amor ao cinema, em geral eles se expressam pelo amor aos
filmes, ou seja, por uma adesão a uma ideia clássica de cinefilia, expressa por
uma enumeração enciclopédica de filmes e realizadores muitas vezes obscuros ou
de restrito conhecimento do grande público. Certamente Kleber poderia ter feito
isso, não apenas por sua trajetória como crítico e curador, mas por sua costumeira
aparição (até mesmo no Letterboxd) sugerindo filmes de realizadores como
Carpenter, Loznitsa, Klimov, Suleiman, entre tantos outros. Mas o amor ao
cinema que Retratos fantasmas evoca não se manifesta pelos valores tradicionais
do projeto estético da cinefilia mas por um aspecto complementar: seu amor às
salas de cinema. Seu filme, portanto, tem aderência ao campo da história
contemporânea, pois, em vez de elencar filmes e realizadores (uma film history)
prefere apresentar o cinema como espaço geográfico (uma cinema history), ou
ainda, como diria meu nobre professor João Luiz Vieira, em vez de uma história
do cinema, uma história de cinemas. Em vez de catalogar filmes e diretores,
Kleber prefere jogar luz para personagens invisibilizados que atuam nos bastidores,
como o projecionista (Seu Alexandre) ou o programador (Geraldo Pinho).
Kleber não invibiliza os
artistas-realizadores, mas não concentra seu filme na defesa de um olhar
puramente estético sobre o cinema e sim em sua relação com a cidade e seu campo
de sociabilidade. Para quem convive com o cinema brasileiro e a cidade do
Recife, o filme de Kleber apresenta diversas sutilezas, desde citar cineastas
importantes no alargamento dessa relação do cinema com a cidade do Recife (uma
ou duas gerações mais antigas que Kleber, como Katia Mesel, Jomard Muniz de
Brito, Ivan Cordeiro, Fernando Spencer, Claudio Assis) mas também de uma
família de artistas, não apenas os que estão em torno dos seus próprios filmes (Leo
Lacca, Clara Linhart, Silvia Cruz com seu bebê a tiracolo, Maeve Jinkins, ou
seja, o cinema como uma família) mas também de realizadores uma geração mais
jovem que o próprio Kleber, como as aparições de A seita, de André Antonio ou O
porteiro do dia, de Fábio Leal.
Nesse ponto, até mesmo pela proposta
de articular a experiência pessoal do realizador com um olhar coletivo, me
causou certa estranheza o apagamento da experiência de Kleber como curador (o
Janela) e como programador (o Cinema da Fundação) e centrar sua trajetória
profissional unicamente como realizador.
Se, ao mesmo tempo, Retratos
Fantasmas reforça o mito da cinefilia em torno de uma adesão romântica ao culto
de uma espectatorialidade clássica, em alguns pontos, nada discretos, o filme é
ousado em afirmar as relações do cinema como instituição com o poder dominante,
seja na associação entre a UFA e o cinema no Brasil por meio do
distribuidor/exibidor Ugo Sorrentino, seja na relação íntima/afagos entre
Severiano Ribeiro e os militares ou líderes políticos/sociais da cidade (o convite
ao casal formado pelo governador do Estado e a Sra. Brennand).
3ª parte: O DIREITO À CIDADE.
Mas o verdadeiro ponto que amarra as camadas do filme é sua reflexão crítica
sobre as transformações da cidade. Algo que aconteceu na cidade do Recife, mas
que pode ser extrapolado para muitas das cidades em todo o mundo. O fechamento
dos grandes palácios dos cinemas de rua são uma metáfora para uma questão mais
ampla que o campo do cinema: as transformações das próprias cidades, ou ainda,
o direito das pessoas à cidade. Elegante, sem precisar fazer uma crítica direta
aos shoppings ou aos multiplexes (alguns dos quais estão exibindo este filme),
Kleber amarra a biografia de seu apartamento em Setúbal com a cultura e o
fechamento das salas de cinema de rua do Centro de Recife com as transformações
da geografia física e humana da própria cidade. Não é à toa que o filme abre com
uma imagem de arquivo com um mapa da cidade antiga entrecortada pelas imagens
atuais em HD com o amontoado de prédios. A verticalização da cidade e sua
transformação em bunker – algo que Kleber abordou em seus filmes, de O som ao
redor a Aquarius – é ampliada nesse filme, como um grande sintoma do
esvaziamento da experiência urbana, que tem afastado as pessoas das ruas e da
cidade, algo oposto à experiência da flanância. Não é à toa que Retratos
Fantasmas também fala do Carnaval, da importância de se ocupar as ruas da cidade,
especialmente do Centro.
Tenho sempre comentado que me
parece ser o único antídoto possível contra as mais nocivas tendências do
capitalismo global investirmos em uma aposta radical numa ideia de comunidade,
resgatar a vida de bairro e o acesso à cultura e arte locais como outro modo de
sociabilidade. As pessoas estão trancafiadas em suas casas e parecem não ter
estímulos para caminhar pelas ruas e conhecer seus vizinhos. Trancafiados em
suas bolhas, estamos tendendo cada vez mais a nos isolar em tecidos sociais
estabelecidos por meio de relações virtuais. É esse olhar crítico sobre os
perigos e as contraindicações das transformações da cidade que faz de Retratos
Fantasmas um filme político. Um filme não apenas nostálgico sobre a experiência
do cinema de rua mas sobretudo um alerta para a importância de ações e de
políticas públicas para potencializar outras experiências de acesso à cidade.
Nesse ponto, Retratos Fantasmas poderia ser exibido conjuntamente com Miami Cuba, de Caroline Oliveira. Se o cinema é utilizado como ponto de partida para
Kleber, como nó que amarra sua trajetória pessoal com sua atuação profissional,
Retratos Fantasmas mostra muito claramente que o investimento no cinema (ou em
cinemas) ultrapassa em muito a mera classe dos artistas e cineastas mas dialoga
com uma política pública de cidadania que amplia o acesso às cidades. Esse ponto
é particulamente importante num momento de crise do cinema brasileiro e dos
cinemas de rua, em que projetos como a renovação da Cota de Tela lutam para ser
aprovados no Congresso Nacional. Nesse momento de grandes desafios, de forma
elegante, sem eleger culpados, é importante que uma figura pública tão
consolidada como Kleber Mendonça Filho se volte para essas questões em torno
não apenas do cinema brasileiro mas sobretudo de seu espaço social. É por isso
que digo que Retratos fantasmas é um filme político mais sutil e mais profundo
que Democracia em vertigem.
4ª parte: O EPÍLOGO. Se o filme
de Kleber é estruturado em três partes, posso me afastar dele propondo uma
quarta parte como epílogo. Se estruturei minha crítica em torno dos eixos “diário
afetivo”, “amor ao cinema” e “direito à cidade”, poderia também tê-lo feito em
torno de três grandes áreas de estudo: a história, a arquitetura e a geografia.
Retratos fantasmas também é um
filme de arquitetura, pois transita entre as transformações de dois interiores:
o apartamento de Setúbal e as salas de cinema do Centro. Mas ainda que o
apartamento seja povoado por pessoas (os amigos, as filmagens, e a vizinhança,
como o incrível personagem do cachorro do vizinho) e a sala de cinema seja
sempre relacionada com a geografia do Centro, permanecem sendo dois interiores,
são dois espaços fechados. Não chega a ser desesperança, mas há certa
melancolia em Retratos Fantasmas, uma inclinação por certa solidão. Talvez por
isso tenha me causado tanto espanto a maravilhosa cena final, encenada em outro
espaço fechado, mas um espaço estranho: algo intermediário entre o íntimo e o
público, entre a casa e a rua, entre o pessoal e o profissional, entre o
documentário e a ficção, entre o real e o imaginário, entre o automóvel como veículo
privado e um projeto de transporte público: esse campo-contracampo no interior
de um Uber. O Uber, filmado entre Kiarostami e Suleiman (ou ainda entre o
Kiarostami de Dez e o Suleiman de It must be heaven), me parece ser o lugar
adequado que expressa todos os dilemas que atingem nossa classe média urbana:
nosso desejo de fazer algo mas também nossa impotência e contradições. Kleber
não caminha pelas ruas como os dois jovens amigos de Documentário, de Rogério
Sganzerla. Ele simplesmente observa pelo interior de um carro que ele não
pilota as paisagens esvaziadas da cidade de Recife, enquanto volta para casa.
Quando o motorista desaparece, Kleber não apenas se refere à combinação
insólita entre o campo do cinema e o domínio do mundo, entre as relações de mão
dupla entre o cinema e a vida (ou seja, como a vida inspira o cinema, e o
cinema irriga a vida, ou ainda, como o real e a mise en scène são
indissociáveis, reflexão ainda mais nobre por se tratar de um filme
documental), mas, acima de tudo, essa sequência final mágica sugere essa desaparição
de outros modos de ser, de um projeto de cidade e de mundo. A partir dessa
ausência tão real e tão mágica, ficamos pensando nesses fantasmas que nos
habitam, em nós e na cidade – as ruínas do bairro de Setúbal, do apartamento,
dos cinemas fechados, da ambiência do Centro da cidade, ou mesmo de sua própria
mãe. As ruínas que desapareceram mas que permanecem. Ou, os fantasmas. Se
Kleber fala muito ao longo de todo o filme, acabamos com esse contracampo
esvaziado, entrecortado pelos pontos de vista do interior do carro para essa
cidade em que não apenas cinemas viram igrejas e lojas de varejo mas diversos
outros tipos de experências viram drogarias, em torno de uma cidade doente, anestesiada
pela indústria de remédios. O Uber me parece representar à perfeição esse
não-lugar ou entrelugar que expressa os desafios de nossa experiência
contemporânea. O filme acaba nesse espaço nenhum em que Kleber, o próprio
realizador, agora corporificado (não apenas em voz), não está nem na casa de
Setúbal nem na sala de cinema, nem tampouco na experiência da cidade. Quase como
o espectador de um filme imersivo (a poltrona do Uber como cinema), personagem
de um filme que ele próprio criou, Kleber perambula em deriva pela cidade-Uber,
pelas ruínas de uma cidade-cinema que talvez não exista mais – ou que talvez
sobreviva ainda assim. O motorista pode ser muito bem o diretor de um filme que
agora é simplesmente projetado e desaparece por meio dos mecanismos de
transparência. Ou ainda, o filme pode ser simplesmente uma mistura insólita
entre “Apertem os cintos! O piloto sumiu” e A carruagem fantasma, de Victor
Sjostrom. Pois, assim como os cinemas e as cidades, todos nós um dia tendemos a
desaparecer, mas talvez algo de nós se prolongue, infiltrado como fantasmas,
ressoando aquilo que permanece, ainda assim.
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