FOGO-FÁTUO
FOGO-FÁTUO
de João Pedro Rodrigues
2022
É fascinante a liberdade desse
filme. Há um bom tempo reinvindico que a chave criativa do cinema está na reiterada
afirmação da ingenuidade. Só a ingenuidade pode vencer o pragmatismo do
capitalismo e a meritocracia de resultados. Mas a vida pode ser vivida de forma
despretensiosa, sem querer nos fazer levar a lugar algum. O cinema não precisa
passar uma mensagem ou mudar o mundo, pode ser apenas uma brincadeira. Mas o
que torna essa brincadeira responsável é o seu compromisso com a liberdade, seu
compromisso com a subversão dos valores da cultura dominante. João Pedro
Rodrigues consegue fazer um filme contemporâneo, pois, ainda que esteja bem
aderente a um conjunto de questões de um circuito institucionalizado em que ele
certamente está inserido, ao mesmo tempo ele parece dar uma banana para tudo
isso, e parece apenas a estar a se divertir fazendo cinema, como se fosse uma
grande aventura.
O que me fascina nesse filme é
como ele combina um olhar um tanto infantil com um tom erótico subversivo. O
mundo de fetiches gay não precisa ter o look do submundo dark opressor mas pode
ser inclusive um conto de fadas. Os bombeiros apagam fogo jogando fogo em tudo!
Acho lindo como o filme combina uma canção infantil e crianças aparecendo por trás dos troncos das árvores, com cenas eróticas falocêntricas em primeiro plano.
Enquanto o pequeno príncipe reconhece os falos dos bombeiros como troncos de
árvores amigas ou jardins paradisíacos, recebe um telefonema de sua mãe
informando da morte de seu pai.
Mas, antes disso, há o prólogo
do filme, em que, em regime de farsa, vemos o rei português em seu leito de
morte, arrodeado por um menino travesso que ignora o tom sóbrio da enfermidade e
continua a viver a vida. Depois, há um banquete em formato frontal teatral, em
que a família real portuguesa faz uma refeição como se estivesse num palco
sendo observados por nós, quase como uma cena de O discreto charme da
burguesia. Mas o tom brechtiano de autorreferencialidade soa como uma galhofa
acerca dos ritos da realeza, quando, de súbito, o pequeno príncipe afirma que
deseja ser bombeiro.
Nisso, o filme corta para um outro
bloco, que mostra o treinamento desse menino numa escola de bombeiros, quase
como um filme de high school americano. Os fetiches com o corpo masculino
brotam em composições pictóricas, como é o exemplo dos bombeiros que formam
figuras inspiradas em quadros da renascença clássica. Esse tom de ingenuidade e
de composição visual a partir dos corpos é coroado numa incrível cena musical,
uma espécie de treinamento do grupo de aspirantes a bombeiros no pátio interno,
uma cena de puro deleite encantatório. Bom trabalho!
O pequeno e despretensioso filme
de Rodrigues é, ao mesmo tempo, extremamente refinado e cuidadoso com os
artifícios da criação, iluminado pelo sábio uso da cor e da movimentação de
câmera orquestrada por um bem jovem Rui Poças. Um pequeno grande filme repleto
de paixão pelo cinema e pela vida. Ecologia, cinema queer, corpos negros, cinema
político antimonarquista??!!.... bem além disso! Rodrigues revira o didaticamente
correto e reintroduz o caminho do prazer como mola mestra para reinventar outro
lugar no mundo. O diretor brada (em pleno palco de Cannes): “Não quero ter um
estilo!”. Morte ao cinema de autor; viva a vida do cinema!
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