AFTERSUN

AFTERSUN

de Charlotte Wells

2022


 

Aftersun é um filme delicado que aborda a relação de um pai com sua filha Sophie de 11 anos, durante um passeio de férias num resort de classe média na Turquia. O resort é uma oportunidade de a dramaturgia promover uma espécie de laboratório de convivência forçada entre os dois, que parece não conviverem juntos (talvez os pais sejam separados e a menina viva com a mãe). Não há muito a fazer ali naquele espaço a não ser promover a interação entre os dois protagonistas. Nesse espaço-tempo de confinamento, o filme opta pelas dramaturgias do comum: a piscina, o quarto de hotel, as atividades de recreação. Além disso, a dramaturgia opta por dois pilares-chave:  o primeiro, relativo aos dilemas da pré-adolescente que observa à distância os modos de sociabilidade dos mais velhos (especialmente adolescentes), à medida que aflora sua sexualidade; e o segundo, sua relação, na modulação entre certa distância e afeto, com seu pai.

Apesar de os dois protagonistas ocuparem bom tempo de tela, é possível perceber que o ponto de vista da narrativa fica mais do lado da filha do que do pai. E, para isso, conta com a brilhante performance da jovem Frankie Corio. Afinal, Aftersun é um filme de personagens, e poucas coisas fisgam mais o espectador que uma relação afetiva entre pais e filhos. Aftersun pode ser visto como uma espécie de coming-of-age, mas em que a protagonista não precisa necessariamente superar nenhum desafio ou prova. Em vários momentos, temos a impressão que ela simplesmente observa sua vida passando, e sua interação com os outros personagens. Essa impressão é curiosa, pois, na verdade, o filme se desenvolve como uma espécie de flashback. A base para isso é uma câmera: é como se o filme todo ocorresse pelo ponto de vista da filha, anos mais velha, que revisita suas lembranças ao encontrar as fitas do material gravado nessas férias. O filme começa justamente com as imagens caseiras dessa gravação feita pela filha, mas os recursos metalinguísticos são discretos, e aparecem apenas eventualmente no filme, como flashes. Até que despontam com mais evidência nos planos finais do filme, que se encerra muito adequadamente como um ritual de despedida, não apenas da menina em relação ao seu universo pré-adolescente mas em especial sua despedida de seu pai, sugerindo inclusive sua morte, no delicadíssimo plano final que conclui o filme, com uma panorâmica circular e uma entrada numa festa-portal. Essa festa também surge em alguns momentos do filme, como flahses em que corpos (especialmente o pai, que gosta de dançar, em contraste com a filha, que observa ao longe) pulsam de forma fragmentada na escura sala de dança.

Por esses momentos, pode-se compreender a opção de Aftersun pelo fragmento, pela irrupção de pequenos momentos de afeto. Assim, Aftersun é um filme bem contemporâneo, pois estamos longe do jogo formal teatral como um Meu pai, de Florian Zeller, mas um pequeno filme contemporâneo em que o roteiro oferece uma sucessão de lampejos de beleza (mas também de melancolia) sem necessariamente uma progressão dramática ou relação causal que forme camadas de suspense ou tensão sintomáticos. Cortes no meio da ação, e elipses bruscas são combinadas com outros momentos alongados, como os corpos que deitam à cama. Aftersun é um filme sutil de camadas de micronarrativas e atmosferas, que me lembram, ao longe, os desafios do belo Lírios d´água, de Celine Sciamma.

Por fim, outro elemento interessante do filme é essa Turquia que quase sempre fica no extracampo, mas que de vez em quando surge no filme. Acho bem interessante a estratégia dessa diretora britânica em situar seu filme numa “ilha” (o resort) dentro de um país tão “exótico” (i.e visto pela cultura europeia como exótico) quanto a Turquia. Esse estranhamento dos personagens em relação ao seu meio social é explorado, ainda que de forma sutil, em dois momentos: a visita à loja de tapetes e o passeio na piscina de argila. Que Turquia é essa que conscientemente permanece sempre no extracampo, mas, ainda assim, está lá?

A inesperada ótima recepção desse discreto filme de uma cineasta estreante no circuito aburguesado dos chamados “filmes de arte” (foi o filme mais visto da Mubi em termos mundiais) comprova como as narrativas contemporâneas são hoje bem aceitas em certo círculo, e como o mundo contemporâneo está carente de histórias humanas em torno do afeto. De fato, Aftersun é um bom filme que tem todos os elementos para cativar os corações das plateias pequenoburguesas ao redor do mundo - e o faz sem os principais chavões do moralismo didático.

 

Comentários

Unknown disse…
Gostei muito do filme e seu texto abriu mais possibilidades de pensar sobre ele.
Parabéns pelo texto, delicado e que ao mesmo tempo remete o expectador para outras referências e para aspectos técnicos que nem sempre percebemos.
Em especial a referência a essa Turquia no extra-campo.

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