(TIRADENTES2023) A VIDA SÃO DOIS DIAS
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
A VIDA SÃO DOIS DIAS
de Leonardo Mouramateus
Mostra Aurora
Se
Tiago A. Neves apresentou uma comédia rasgada que aborda os desafios em superar
o luto, por incrível que possa parecer a quem assistiu aos dois filmes, não é
muito diferente o desejo de Leonardo Mouramateus em A vida são dois dias. No entanto, no caso de Mouramateus, esse
jovem cineasta oriundo da Maraponga, periferia de Fortaleza, que teve uma
carreira meteórica com seus curtas, e se refugiou em Lisboa, essa comédia
rasgada não é propriamente popular mas erudita. Ou, se pudermos nos expressar
melhor, é justamente desse conflito entre o popular e o erudito que surge a
chave de fascínio ou de estranhamento que emana desse filme misterioso. Um
amigo, ao final da sessão, disse que o filme é uma tentativa esmerada de
produzir uma comédia que ninguém ri.
Ou ainda, colocando em outros
termos, o próprio Mouramateus costuma dizer, a respeito de seu longa anterior, António um dois três, que os brasileiros
viam seu filme como português demais, e os portugueses, como brasileiro demais,
de modo que o filme nem era brasileiro nem português. E o que ele seria, então?
Talvez o filme venha desse lugar encantado chamado Cinema.
Busco, então, me aproximar desse
filme a partir do estranhamento causado a partir do conflito, ou ainda, desse
lugar-estrangeiro, a partir de uma relação de trânsito mas que também é
inventada pelo próprio cinema. É tentador relacionar esse desejo transidio do
filme com a própria trajetória pessoal do realizador, não apenas porque o filme
se espraia entre Fortaleza e Lisboa (com passagens pelo Rio), mas também porque
ele é repleto de experiências afetivas do realizador, começando por montar uma
equipe (técnica e de elenco) bastante heterogênea mas repleta de seus amigos
pessoais. Entre outras sutilezas, talvez mereça destaque uma pequena
participação da grande realizadora Rita Azevedo Gomes, um gesto delicado e
curioso, uma vez que o próprio Mouramateus já havia feito uma participação em A Portuguesa, dirigido por Azevedo
Gomes.
Mas gostaria de voltar a esse
clima de estranhamento-estrageiro a partir desses conflitos. Outra forma de
vê-lo é também por meio das encruzilhadas e bifurcações entre a literatura e o
cinema. Assim como Antonio um dois três,
o novo filme de Mouramateus é também uma espécie de jogo formal literário sobre
a criação (não à toa entre os dois irmãos, há um romance a ser publicado, e
suas diferentes versões). É por meio de um jogo de quebra-cabeças entrecortado
por suas relações formais que o cinema e a literatura, o Brasil e Portugal, o
popular e o erudito, se fundem nesse filme como uma dança-música jovem contemporânea
(afinal, todo filme de Mouramateus precisa ter alguém dançando rs).
Ao mesmo tempo, sinto que todo o
tom jocoso, relaxado, jovem e cool do filme é expresso por meio de um estilo
formal extremamente consciente e marcado de cada um dos seus passos e de seus
gestos – e, às vezes, chego a questionar se não seria excessivamente marcado
demais. Não sei se exagero, mas sinto haver algo de Ozu nesse desejo em
arquitetar uma crônica da amizade jovem, e buscar um respiro poético do
prosaico, mesmo em torno de todas as possíveis reviravoltas (quase parodiando
uma novela sobre Princesa Isabel) da trama, e balizá-las a partir de um
expressivo rigor formal.
Coroando todas essas possíveis
reflexões sobre a ideia do duplo, surgem como protagonistas esses dois irmãos gêmeos
– um deles (não sei se viagem minha rs) caracterizado quase como um antigo
curador brasileiro que vivia em Lisboa e que era amigo de Leonardo. Esses dois
irmãos, que acabam se reencontrando e fazendo as pazes no meio das
circunstâncias. A solar personagem de Mariah Teixeira funciona como
intermediadora, mas sinto que esses dois irmãos são as duas metades que não se
fundem perfeitamente nessa comédia insólita, quase uma screwball comedy filmada por um cineasta português como Oliveira,
ou mesmo como Ozu. Ou como Eugène Green, também um estrangeiro que filmou em
Portugal. Sinto ser belo esse gesto de os dois irmãos se reabraçarem afinal,
por meio do atravessamento de um livro, e que essa mistura insólita só poderia
acontecer numa cidade tão improvável quanto Fortaleza. Adoro o modo do
despertar do irmão adormecido por meio do humor, da ingenuidade – acho o
momento mais belo do filme. E a cartela final me fez imaginar que, de algum
modo, Mouramateus fez, ao seu jeito, uma homenagem a Me and my brother, de Robert Frank.
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