(TIRADENTES2023) O canto das amapolas
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
O canto das amapolas
de Paula Gaitán
Mostra Olhos Livres
Num cinema e numa socidade
brasileiros cada vez mais regidos pelo patrulhamento da vida social em que tudo
parece girar em torno de nossa dependência das macropolíticas de Estado, é
impressionante como, em suas aparições públicas, Gaitán se afasta de qualquer
resquício de populismo demagógico para se debruçar sobre as profundezas
misteriosas da arte como instância de criação. O debate com Gaitán, na manhã
seguinte à exibição de seu filme, foi um daqueles raros momentos iluminados, em
que parecia ser possível viver pensando o cinema e a vida em suas expressões
puras, nada mais, nada menos. Esse despertar de nossa experiência sensível que
parece estar sufocada diante da imposição de pautas de urgência. Essa é a
importância vital de seu cinema nos dias de hoje.
Nessa perspectiva, O canto das amapolas resgata uma certa
vertente do cinema de Gaitán, que é a investigação poética do cinema em
primeira pessoa, numa linha que evoca alguns de seus trabalhos, como Diário de Sintra ou o curta Memória da Memória. Em primeiro plano, a
relação direta, franca, da própria realizadora com sua mãe. A filha pergunta à
mãe sobre questões de seu passado, de sua vida pessoal. Segue-se um conjunto de
informações mas que o filme não demonstra especial interesse em revelar ou
desvendar. A mãe procura relatar à filha questões de seu passado, mas muitas
delas vão permanecer, ainda assim, sob o manto do mistério. A mãe e a filha
nunca são vistas como imagem em cena, mas permanecem no extracampo. Há algo
doce, mas também ríspido na relação entre as duas. Não se trata propriamente de
uma situação de confronto, mas de certo modo há ali um abismo que nunca será
atravessado. Penso, assim, nos limites do relato oral, ou ainda, nas
impossibilidades da linguagem em dar conta do passado, de rememorar o que foi.
Como já nos disse Hiroshima, meu amor,
mesmo que vejamos as fotos e tenhamos acesso às informações, ainda não vimos nada, ainda há tudo a ser
visto e contado, pois todo esse conjunto de coisas nos relata de forma
meramente parcial a experiência do vivido.
Essa mãe e essa filha permanecem
no extracampo. O que vemos? Sombras das vozes das duas mulheres, o vento a
balançar a cortina da sala, objetos e mais objetos nos aposentos da casa vazia,
espaços ermos em paisagens apartadas dos centros urbanos. Algumas vezes uma
mulher caminha como uma bailarina por entre campos e jardins, em certo momento
mergulha num lago. Em outro, a lápide de Mendelssohn volta a assombrar a
imagem. Pois afinal, quem seriam as amapolas que ainda cantam?
Pois, para além do diálogo entre
mãe e filha, as sombras do passado projetam um segundo plano: não apenas a
família, mas a Alemanha, os desafios e angústias de uma jovem judia a crescer no
país, os fantasmas da família durante a guerra. Entre as memórias do passado
vistas no presente, e entre a Alemanha vista por essa brasileira-colombiana,
penso na questão do extracampo. O extracampo (por exemplo, um plano de um bando
de pássaros que ganham voo em torno de uma cadeira vazia e se perdem no
horizonte, um plano quase de um universo maureano
– ou ainda, o que há por trás das cortinas que balançam por longo tempo logo no
início do filme) me aciona essa experiência do estrangeiro que ocupa todo o
filme. As estratégias de encenação do filme revisitam as memórias da
realizadora como uma estrangeira de si, ao mesmo tempo em que o espectador
procura rastros que tornem possível sua aproximação com o misterioso universo
do filme.
Nessa busca poética, penso em
ecos ou diálogos de cineastas como Agnès Varda, Marguerite Duras e Chantal
Akerman. Vejo O canto das amapolas
como uma espécie de Là-bas e No home movie de Paula Gaitán, mas,
claro, com seu estilo inconfundível, que dá continuidade a uma pesquisa de
muitas décadas no cinema.
Acho
muito bonito que o prêmio da Mostra Olhos Livres, oferecido pelo Júri Jovem,
tenha ido para Gaitán. Pois há raras realizadoras no Brasil de hoje que
perseguem uma pesquisa consistente e perene em torno da liberdade do cinema, e
poucas veteranas permanecem com tamanho desejo de se conectar com uma geração
jovem quanto Paula.
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