(TIRADENTES2023) O CANGACEIRO DA MOVIOLA
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
O CANGACEIRO DA MOVIOLA
de Luís Alberto Rocha Melo
Mostra Olhos Livres
O cangaceiro da moviola começa como um típico documentário
biográfico, com informações pessoais do biografado, fotografias de seus pais e
recursos protocolares sobre a origem, numa visão cronológica. Acontece que o
biografado é uma pessoa de cinema: Severino Dadá, grande montador que
atravessou décadas de atuação no cinema brasileiro. Além de tudo, Dadá é uma
figura personalíssima, grande contador de casos e histórias, um apaixonado pela
vida. E essa paixão pela vida e pelo cinema parece que vai, somente aos poucos,
contaminando o filme. Parece que, a partir de um determinado momento –
justamente quando Dadá se percebe como um grande montador, quando, segundo o
próprio, ele cursou um “mestrado de montagem” ao trabalhar com Nelson Pereira
dos Santos – o filme vai deixando suas relações básicas de ancoragem para se
propor a um mergulho através dos
filmes que Dadá montou. Parece ser justamente o momento em que o montador (o
próprio realizador) resolveu deixar de lado o olhar um tanto cerimonioso e se
entregar a essa paixão pelo cinema.
E
aqui merece a ressalva que seu realizador, Luís Rocha Melo, é um grande
estudioso e especialista do cinema brasileiro, desde os tempos em que escrevia
críticas na Revista Contracampo até seu mestrado e doutorado na UFF sobre o
cinema brasileiro (sobre Alinor Azevedo e o cinema independente brasileiro). A
partir de então, O cangaceiro da moviola
combina a paixão da cinefilia com o rigor acadêmico, e ganha asas. A se
destacar que o filme surgiu como um projeto de pesquisa dentro de uma
universidade brasileira (Rocha Melo é professor de Cinema na UFJF), feito raro,
uma vez que as pesquisas sobre cinema dentro da Universidade ainda estão muito
voltadas ao formato escrito e, nesse sentido, o filme de Rocha Melo abre muitos
horizontes de diálogo entre teoria e prática, ou entre crítica e teoria, ou
entre história e cinema. Algo que me lembra de Passagens, filme de Lúcia Nagib e Samuel Paiva, exivido, entre
outros espaços, no Festival de Roterdã, um diálogo entre o cinema pernambucano
e paulista no contexto do Cinema da Retomada.
À
medida que avança e se abre, O cangaceiro
da moviola nos faz perceber que o filme pode ser visto não somente como um
documentário sobre Severino Dadá mas sobre o próprio cinema brasileiro. Como
montador, Dadá atravessou décadas trabalhando no cinema, em filmes e com
diretores de diferentes estilos, abordagens e origens. Esse mote faz com que
Rocha Melo possa promover uma trajetória do cinema brasileiro por outras
perspectivas, para além dos contextos canônicos. Em primeiro lugar, por apresentar
o ponto de vista de um “técnico” – apesar de um montador, assim como outras
funções, ser apenas aparentemente técnico, uma vez que obviamente envolve um
trabalho enorme de criação, mas o rótulo “técnico” foi criado por um modelo
clássico de supremacia do diretor como autor da obra. É muito importante que
possamos acessar outras perspectivas sobre o cinema brasileiro de outros pontos
de vista, e nesse sentido o olhar de Dadá é iluminador. Em um determinado
momento do filme, vemos o depoimento de um eletricista que começou no filme
inacabado de Orson Welles e passou pela Atlântida e demais estúdios
brasileiros. São esses fios que Rocha Melo procura desvelar em seu filme.
Além disso, Dadá trabalhou em
muitos filmes, de diferentes períodos, com muitos realizadores. Assim, Rocha
Melo possui uma oportunidade de abrir leituras para outros filmes, considerados
à margem do cinema brasileiro. Entre tantos, destaco Boi de Prata (Carlos Augusto Ribeiro Jr., 1981) e Um brasileiro chamado Rosaflor (Geraldo
Miranda, 1976). Ou o curta-média Sulanca,
da pernambucana Kátia Mesel. Muitas outras passagens poderiam ser citadas, como
a passagem de Dadá pelo Ceará (trabalhando com Rosemberg Cariry e Wolney
Oliveira) e seu trabalho com Octávio Bezerra. Mesmo trabalhando com Nelson
Pereira dos Santos, é interessante a ênfase do filme em Tenda dos milagres, considerado um filme menor na carreira de
Nelson, onde Dadá se torna um personagem de si mesmo, um montador. Nesse
momento, o Dadá montador de Nelson torna-se um personagem dentro do filme de
Rocha Melo, adicionando várias camadas.
Deve ser difícil realizar um
filme de montagem sobre um grande montador. E quem assumiu essa missão foi o
próprio realizador. Rocha Melo conjuga um grande material de arquivo, filmado
em várias cidades, com texturas e durações diferentes, conseguindo compor um
filme de ritmo envolvente e contagiante, especialmente em sua metade final,
quando os filmes (o próprio cinema) se tornam protagonistas, atravessados pelos
olhos de Dadá. Até que tudo culmina num final singelo mas muito bonito, em que
saímos da sala escura da moviola e do universo do próprio cinema, para rodear
Dadá do mundo, de seus amigos e de sua cidade natal Pedras. A volta ao Lajedo,
a leveza, a alegria e até a certa ironia (a comparação com Ford) com que Dadá
imprime a essa jornada nos revela que, para além do cinema, também há o mundo –
e o desejo do realizador em integrar as duas vertentes (veja o início
entrecruzando planos numa feira popular) é bastante comovente.
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