OS FABELMANS
OS FABELMANS
Steven Spielberg
2022
Antes, é preciso fazer um
esclarecimento. Comecei o texto anterior falando de Tarantino e PTAnderson. Mas
é preciso perceber algo: esses já são autores que começaram sua filmografia em
meados dos anos 1990, uma década (assim como nos anos 1980) que o então cinema
contemporâneo já se inclinava em torno de dobras autorreferentes. PTAnderson
começou no cinema com uma homenagem ao cinema dos anos 1970 por meio de uma
releitura do underground do universo pornô; e Tarantino ficou conhecido
justamente por uma hibridação original de um conjunto de referências que
misturavam o universo pop de filmes orientais e norte-americanos B das
prateleiras emboloradas das videolocadoras, por meio de uma violência cool estilizada.
Os filmes mais recentes desses dois realizadores são muito
contemporâneos, pois são sobre o prazer de filmar. São filmes episódicos, cuja
duração se estende não por um princípio de unidade dramatúrgica, mas que
valorizam o fragmento, o incompleto, o acaso, o não-totalitário. Acima de tudo,
os cineastas estão se divertindo filmando, e a vida pode ser vista como uma
grande aventura sem destino ou missão, quase como uma brincadeira dos deuses ou
dos roteiristas. No mundo hollywoodiano dos executivos do Vale do Silício e dos
“universos cinemáticos”, são filmes de resistência porque afirmam a vitória do
prazer sobre o pragmatismo do cálculo dos produtos das fórmulas de sucesso
comercial.
Mas algo bem diferente se expressa no cinema de Spielberg,
em especial neste Os Fabelmans ou mesmo no remake de Amor, Sublime Amor: um
sentido de trajetória ou de missão. Aqui, também temos outra ironia sobre a “nova-velha
Hollywood”, uma vez que Spielberg (assim como Lucas e, em outra medida,
Scorsese) surgiu justamente como o “jovem prodígio” que iria transformar
Hollywood justamente renovando-a. Spielberg abriu o cinema hollywoodiano para o
“cinema jovem” com um filme-marco como Tubarão – que, assim como Star Wars,
pode ser considerado a semente que culminou mais tarde nos “universos
cinemáticos dos super-heróis”. Ao mesmo tempo, o bom-mocismo de Spielberg
conduziu seu cinema para uma adequada leitura dos desafios do homem americano
em amadurecer e se tornar um “cidadão do bem” – aquele que vai levar os
princípios do “American way of life” adiante. Ou seja, para o fascinante desafio
do cinema de Spielberg, a missão era (usando uma frase de Lampedusa replicada
no início de O Leopardo, de Visconti) que as coisas precisavam mudar para que
elas continuassem as mesmas.
Mas o jovem prodígio não apenas amadurece mas também se
torna velho. E é curioso que o mago que plantou as sementes dos “blockbusters
teen de verão” agora represente a manutenção da “velha Hollywood”. Mas, para
Spielberg, que já dirigiu tantos blockbusters tecnológicos como Guerra dos
mundos (elogiei o filme aqui) e Parque dos dinossauros, parece que o momento é de um acerto de contas
com sua própria formação, resgatando um mito de origem da sua própria
identidade como artista e como cidadão americano.
Ao mesmo tempo, The Fabelmans é um filme pessoal, porque é
central para o projeto fugir da síndrome de Peter Pan: não se trata mais do
menino que precisa manter a chama acesa da ingenuidade, mas exatamente aquele
que precisa romper o cordão umbilical da família para encontrar o seu próprio
lugar no mundo. Mas isso só é possível na medida em que esse menino prolongue
uma certa vertente adormecida de sua família (a veia artística de sua mãe,
sufocada justamente pelas conveniências de sua inserção no seio familiar), ou
seja, o filme propõe uma conciliação entre um diálogo com uma tradição profunda
mas adormecida com uma contribuição nova singular que, em certa medida, é uma
ruptura. A visita do seu tio-avô aparece como o anjo Gabriel que lhe diz que é
preciso romper para encontrar o seu próprio lugar no mundo. O cinema será uma
forma de sublimar as dores, as frustrações e as decepções do curso de sua vida,
e envelhecer e amadurecer como artista é ter que lidar com isso. A família, o
encanto da criança diante do mundo, a magia do cinema, manter a ingenuidade mesmo
diante de um mundo injusto – todos temas centrais na filmografia desse
realizador que é um dos ícones-símbolos-sintomas de uma forma de relação popular
direta entre cinema e mundo – com todas as delícias e os incontáveis problemas
dessas proposições...
Desse modo, é curioso que Spielberg cite tão expressamente Ford,
pois me parece que seu cinema tem muito pouco do estilo franciscano de Ford (“os
personagens sofrem mas aguentam, não ficam a chorar como crianças ingênuas”) e
me parece que opta por outro padrão ético: o cinema de Capra, sua necessidade
de resgatar um otimismo numa sociedade arrasada pelo crash de 1929, e seus
personagens adoravelmente românticos e ingênuos, que lutam com dignidade contra
os desafios da vida e mantêm-se sólidos, humanos e incorruptíveis mesmo assim. A
valentia diante da humilihação e do fracasso dos personagens que sujam as mãos
de terra e de sangue dos filmes de Ford são substituídos pela dignidade e da honestidade
dos personagens puros de Capra.
A sólida e emocionante fábula moral de Os Fabelmans curiosamente
me parece menos interessante que o muito mais despretensioso e pragmático Top
gun Maverick, que me parece muito mais propositivo em compreender o mundo como
ele é e ainda assim se inserir nele. Spielberg parece não compreender que o
mundo mudou e ou não vê ou faz vista grossa para o anacronismo de seu projeto
universalizante em torno do triunfo dos valores do coming-of-age dessa classe
média branca– o mundo de hoje não é mais a Hollywood conservadora dos anos
1950, e nem me parece um projeto adequado revivê-la. Por trás do
bem-intencionado e comovente The Fabelmans, mesmo filmes dos anos 1980 como
Conta Comigo ou O Clube dos Cinco soam muito mais contemporâneos sobre os dilemas
da juventude, justamente porque, se o protagonista precisa sair da família para
encontrar seu lugar no mundo, Spielberg parte do pressuposto que a família
nunca sairá dentro dele – e, com ela, todos os valores das instituições
americanas. Mesmo que a mãe rompa com a família tradicional (pelo menos, ela
fez diferente da mãe de Tudo que o céu permite, de Sirk), o pai diz ao filho em
diálogo comovente que a história do casal nunca terá um FIM (ver foto 1) – ou seja,
em última instância, mesmo que corrija o enquadramento na direção do horizonte
(ou seja, seguindo as lições e as tradições dos mestres), Spielberg nunca
conseguirá promover uma ruptura com seu cinema e cortar o cordão umbilical que
o torna refém de seu próprio cinema (uma armadilha típica dos maiores artistas).
Acima de tudo, Os Fabelmans sempre precisará se manter como uma fábula moral
edificante, empurrando para debaixo do tapete todas as suas contradições.
De todo modo, é comovente a tentativa de Spielberg em
contribuir nesse debate sobre a necessidade de inserir outros valores ao cinema
norte-americano de hoje, resgatando uma linhagem que se remete a uma tradição.
A essa altura do campeonato, Spielberg já poderia ter se aposentado e
simplesmente ficar a colher os louros de sua jornada de mito. Depois do “fracasso”
do belo Amor, sublime amor, Spielberg, sem nada a provar a ninguém, contribui
com o cinema de hoje com um mergulho deveras consciente no passado – ao mesmo
tempo, um mergulho muito coerente com sua própria trajetória no cinema. Apesar
de comovente, é preciso aceitar que os recursos de mise en scène desse olhar
talvez contribuam muito pouco para os desafios que estão postos, simplesmente
porque propõem um recuo, sem levá-los para outro lugar. Talvez Os Fabelmans
possam ser vistos como “o canto do cisne” desse que é um dos mais importantes
autores do cinema norte-americano pós-anos 1960 – e nisso respeito aqueles que
se veem extremamente tocados com esse gesto.
Mas essas aventuras de tomada de consciência de um jovem
artista (um romance de formação clássico à moda goetheriana, um Bildungsroman),
contadas à maneira de um filme de estúdio dos anos 1950, talvez se conectem
muito mais com os dilemas de sua própria geração do que a dos jovens que
possuem a mesma idade do protagonista, que provavelmente o veem como uma fábula
edificante como aquelas contadas por seus pais antes de dormir para sempre. São
tantos os enormes problemas (as contradições) que a moral desse filme de
Spielberg encerra que nem precisamos nos remeter às leituras decoloniais e
identitárias para identificá-las.
Há muitas outras
questões nesse filme de Spielberg que gostaria de desenvolver mais. Algumas são:
Foto 3: o cinema não necessariamente fala a verdade. Mesmo nos seus “registros documentais”, como um acampamento familiar ou nas férias estudantis, o cineasta manipula o material na montagem. Sam só percebeu de fato o que ocorria com sua família por meio do cinema (por meio de suas filmagens, quando ele se tornou um objeto do seu olhar). Mas Sam sabe que o filme que apresentou à sua família não revela de fato como sua mãe é, nem tampouco é o filme que gostaria de fazer naquele momento, mas é o filme que precisava fazer segundo as conveniências.
A mesma coisa o filme da escola, apresentado na formatura. Ele contrói a imagem de seu herói, porque lhe é adequado/conveniente, mesmo que esse cara não lhe seja agradável nem de grande respeito. E também detona a reputação de seu outro agressor. Sam manipula na montagem as imagens para que o sorvete derramado pareça cocô das gaivotas. O cinema não necessariamente fala a verdade, mas uma verdade conveniente.
Foto 4: há dois
momentos muitos interessantes no filme, em que acho que o filme foge do seu
determinismo. O primeiro é o apelo sensual de Jesus, de modo que essa cena
parecia uma versão teen de um filme de Gabriel Mascaro como Divino Amor.
Foto 5: o segundo
é essa conversa entre os dois alunos tão diferentes, ou entre diretor e ator.
Por que Sam fez uma imagem tão positiva de seu galã quando este o agrediu? E
por que o galã se sentiu tão incomodado com sua imagem no filme, se esta foi
tão positiva? Creio que o filme abre janelas de reflexão sobre a relação entre
criação e vida com essa cena tão singela. Gosto muito desse plano do filme com
os três personagens em quadro.
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