[FestAruanda] A praia do fim do mundo
[Cobertura do 16º Fest Aruanda ]
A PRAIA DO FIM DO MUNDO
de Petrus Cariry
Dadas as perversas descontinuidades da política
pública para o cinema brasileiro e as lacunas de nosso mercado, é um fato raro
presenciarmos um cineasta relativamente jovem como Petrus Cariry chegar ao seu
sexto longa-metragem. E ainda mais raro é o fato por tê-los realizado todos no
Nordeste, o que nos aponta para um cenário de transformações do cinema
brasileiro a partir dos anos 2000, quanto à descentralização e à pluralidade dos
seus modos de fazer e de ser.
Mas o que é mais notável nesse seu sexto
longa-metragem é perceber que Petrus vem construindo uma filmografia tão
sólida, o que nos permite acompanhar a trajetória de um cineasta que vem
desenvolvendo, com cuidado, uma pesquisa dentro do cinema brasileiro
contemporâneo.
Isso só é possível porque Petrus vem conseguindo
manter a continuidade de sua produção. Muitos cineastas brasileiros
promissores, que realizaram primeiros filmes de destaque, não conseguem dar
continuidade em suas filmografias por conta dos abismos de nossa política
pública e de nosso mercado. Muitas vezes, quando conseguem afinal realizar seus
segundos filmes, tanto tempo se passou que sua energia se dissipa e não
conseguem aprofundar a contento as suas pesquisas.
A praia do fim do mundo foi gestado em circunstâncias
muito específicas: de um lado, foi filmado em plena pandemia, o que exigia uma
equipe menor e uma série de cuidados especiais; de outro, foi fruto da Lei
Aldir Blanc, uma lei emergencial que previa prazos de execução bastante
exíguos. Além disso, Petrus estava desenvolvendo, há um bom tempo, seu próximo
longa-metragem (Mais Pesado é o Céu), que precisava ser filmado logo em
seguida.
Todas essas circunstâncias poderiam nos levar a
acreditar que Praia poderia ser um mero entremeio no interior da filmografia de
Petrus, especialmente tendo em vista os métodos de um realizador tão obcecado
pelos detalhes e pelo artesanato de seus filmes. No entanto, esse curiosamente
surge como um de seus melhores filmes, que comprova sua maturidade como
realizador.
A afirmação dessa suposta maturidade surge pelo fato
de que esse filme deixa claro a trajetória do realizador em torno do que chamo
de uma pesquisa cinematográfica. Assim, neste A Praia é possível identificar
uma série de elementos de seus filmes anteriores. A primeira referência vem de
seu curta A velha e o mar (2005), um documentário que mostra uma velha senhora
que resiste em permanecer em seu casebre à beira da ponte abandonada, ainda que
prestes a desabar. A solidão da senhora e as transformações da natureza e de
seu entorno também são um ponto em comum com um curta posterior, O som do tempo
(2011), em que outra senhora idosa permanece em seu casebre inalterado mesmo
diante da grande transformação urbana da cidade.
Esses dois curtas documentais traziam a solidão
dessa senhora diante de um contexto urbano em que as transformações da natureza
são problematizadas diante da especulação imobiliária, algo que, em outra
chave, também foi trabalhada por filmes do Coletivo Alumbramento, de Fortaleza,
como Inferninho (2019). No entanto, em A Praia, Petrus incorporou a essas
questões um diálogo íntimo com seu cinema de ficção. Penso, especialmente em
Mãe e Filha (2011), exibido há exatos dez anos, no mesmo Cine Ceará onde
nasceu A Praia, outro filme aparentemente de entremeio, mas que ainda hoje
permanece talvez como a principal obra do cinema de Petrus. Esse diálogo se
manifesta não apenas pelo plot (um conflito geracional entre mãe e filha, em
que a mãe permanece na casa em ruínas como sintoma de seu ensimesmamento ligado
ao passado) mas especialmente por um cinema de mise en scène que foge dos
recursos tradicionais do regionalismo clássico para desenvolver um certo neoformalismo
existencialista que parece dialogar muito mais com certo cinema do Leste
Europeu (Tarr, Bartas, Omibaev) do que com o cinema do Nordeste. Outro ponto já
apresentado em Mãe e Filha e aprofundado em Clarisse (2015) é o diálogo com o
cinema de gênero de terror, mas que surge muito mais como leve sugestão para estimular
um desejo de um clima cinematográfico do que propriamente de um diálogo explícito
com as características prototípicas do gênero.
No entanto, o frescor de A Praia ocorre porque Petrus
não simplesmente repete os mesmos elementos mas os reelabora. Dizem que os
verdadeiros artistas são aqueles que estão sempre a reescrever a mesma obra,
ainda que de formas diferentes. Petrus, por trás de sua artesania elaborada,
costurada à mão de forma minuciosa, desde a cuidadosa iluminação à luz de velas
das cenas de interiores de Mãe e Filha e de O barco até a intermediação digital
de Clarisse, vem construindo um cinema de grande potência cinematográfica em
termos uma ambiência sugestiva, por meio da composição da imagem (filmes
fotografados e finalizados pelo próprio diretor) e também sonora (com a grande
colaboração de Érico Paiva, editor de som e mixador). As texturas de camadas de
som e imagem revelam um cineasta profundamente imerso em cada detalhe dessa grande
artesania que é o processo cinematográfico. Além de Érico, outros colaboradores próximos também poderiam ser citados, como Sérgio Silveira e Lana Patrício, Firmino Holanda, Barbara Cariry e Teta Maia, entre outros, como parte integrante dessa família cinematográfica, num sentido amplo do termo.
Algumas vezes o preciosismo dessa artesania técnica
pode acabar por sufocar o filme, como é o caso de alguns momentos de O barco.
No entanto, os melhores momentos de sua filmografia ocorrem quando esses
recursos potencializam o mergulho no drama da existência de seus personagens,
seus silêncios, sua dificuldade de se inserir no mundo, ou seja, suas solidões.
A Praia do fim do mundo também pode ser visto como a eterna luta do ser humano
contra a natureza, não apenas a natureza como paisagem natural mas
especialmente a luta contra sua própria natureza interior. Em muitos filmes de
Petrus, o embate diante da natureza, a inevitabilidade da morte, a dificuldade
do diálogo entre gerações distintas, a certa presença de um fatalismo ou do
destino nos permite aproximá-lo até mesmo do cinema nórdico, de certa vocação expressionista
(o primeiro Dreyer, Stiller, Sjöström), nesse caso particular ainda mais
reforçado pela fotografia preto-e-branco e pela relação de aspecto de formato
mais quadrado que panorâmico.
Dessa forma, para tentar concluir esse texto que vai
ficando um pouco longo (espero retornar a esse filme em outro momento), está
claro que ali não é possível permanecer. No cinema de Petrus, tudo aponta para
essa impermanência, para o fato de que o tempo, ou a morte, vai destruir tudo, vai
inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, arrastar tudo diante de si, e que a
tradição será destruída pela força da natureza dos nossos tempos, e que isso
não é sinal de progresso, nem garantia de nada. A força da correnteza como
destino inexorável dos seres humanos é que nos permite aproximar sua pesquisa muito
mais do cinema nórdico do que mesmo do cinema eslavo (ou até mesmo de um Ozu).
Pois, o que resta para a nova geração, para os filhos?
Fugir? Construir algo novo? O que resta diante da destruição do que foi? A
tempestade estaria mais próxima de um castigo de Deus aos Homens (como na
parábola de Jonas e a Baleia) do que de um processo gerado pelas contradições
do nosso sistema social e econômico. Uma questão mais da própria natureza
humana do que dos nossos processos sociais. Talvez esse seja o ponto que torne
o misterioso cinema de Petrus, essa espécie de neoformalismo existencialista, uma
ilha no interior do cinema brasileiro, ou ainda, que sinaliza para sua candente
solidão. A insistência nesse gesto de solidão e a possibilidade de ele
sobreviver mesmo diante de todos os prognósticos é o que torna o cinema de Petrus
de valiosa potência no cinema brasileiro contemporâneo.
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