THE CARD COUNTER
THE CARD COUNTER
de Paul Schrader
Para quem já conhece a filmografia de Paul Schrader,
THE CARD COUNTER não chega a ser exatamente uma novidade. Para esse realizador
que cresceu no coração do cinema independente norte-americano dos anos 1970 e que,
ao mesmo tempo, sempre foi apaixonado pela ética jansenista de Robert Bresson,
o cinema era o meio ideal para por no mesmo plano suas visões entre o sagrado e
o profano, entre a danação e a salvação. Todo o percurso dos personagens
sombrios de Schrader por um certo submundo, ou ainda, pelas forças do mal, tem o
objetivo de aproximá-los de uma ideia de sublime.
Após a boa
repercussão do pobre mas maravilhoso FIRST REFORMED, Schrader teve maiores
possibilidades de prosseguir fazendo cinema, contando com a produção executiva
de seu velho amigo Martin Scorsese. Ainda assim, THE CARD COUNTER é um filme
independente, de baixo orçamento para os padrões do cinema norte-americano. Há
uma frase do protagonista que pode ser lida como um comentário de Schrader
sobre seu ofício: ainda que ele saiba ler as cartas como ninguém, ele prefere não
chamar a atenção e ganhar pouco, o suficiente para ter uma vida confortável,
sem ter a cobiça de se tornar um grande apostador e botar tudo a perder. O
cinema hollywoodiano é como uma rodada de pôquer, em que apostadores,
gangsters, investidores e outras personas mais participam dessa grande roleta
russa entre a glória e a perdição. Por isso, os filmes de Schrader são
profundamente americanos, e nunca europeus. É só ver como Schrader filma com
afeto a famosa geografia dos quartos de hotel do interior norte-americano ou a
amplidão das planícies das estradas do meio-oeste.
Tenho a tentação de
associar a figura solitária e taciturna do protagonista com o papel de Schrader
no cinema americano. De todo modo, mesmo com pouco, vemos um cineasta na
plenitude de sua maturidade como realizador: THE CARD COUNTER encanta para
aqueles poucos que compreendem o cinema como um estilo. É como o próprio
protagonista que tem seu estilo próprio, e se recusa a ganhar $10mil usando uma
camisa qualquer de um patrocinador. Um cinema de corte clássico, com uma
decupagem sóbria e elegante, ao mesmo tempo sem nunca chamar a atenção
exageradamente para si mesma. Ao mesmo tempo, o filme surpreende pelo brilhante
uso das cores – um filme de cores frias entremeadas com neons extravagantes, um
brilho falso e sedutor que domina todo o filme. Há, ainda, um momento incrível
quando La Linda convida Tell para passear num bosque artificialmente colorido,
uma cidade artificialmente colorizada. Esses efeitos cromáticos são um pequeno exemplo
dessa pulsação de prazer que esse velho realizador ainda preserva nesse
trabalho de base, que é essa artesania da direção cinematográfica.
Por outro lado, se THE CARD COUNTER é encantador
como caminho de continuidade de um veterano realizador em plena forma de
maturidade, ao mesmo tempo o filme promove uma espécie de diluição de opções já
vistas no cinema de Schrader, sem acrescentar muito ao que já foi visto. Não
que isso seja necessariamente um problema, mas não raras vezes o filme se
ressente de uma maior coerência ou mesmo potência nos momentos dramáticos em
que a ideia de sublime possa de fato afetar o espectador. Prova máxima disso é
o momento final, já plenamente antecipado por aqueles que conhecem o cinema de
Schrader, diluindo o final de American Gigolo, que, por sua vez, já era uma
revisitação de Pickpocket, de Bresson. Muito poderia ser dito sobre as reverberações
do cinema de Bresson nesse filme, especialmente com Pickpocket, como na atuação
precisa do galã Oscar Isaac, em papel surpreendente. Mas há uma diferença:
enquanto Bresson estava fascinado no ato do crime, como as cenas da sutileza do
balé das mãos que orquestram o roubo, quase como as mãos de um pianista,
Schrader não decupa as cenas de poker com o mesmo prazer. Ou ainda, Schrader não
filma as roletas da forma perturbadora como Franju em A cabeça contra a parede.
De outro lado, quando o filme busca tocar o passado do protagonista,
especialmente as cenas de violência e tortura em Abu Ghraib, o filme parece se
perder. Me parece que quanto mais Schrader escapa de seu thriller intimista e
embarca numa proposição de cinema político sobre a guerra, THE CARD COUNTER
parece perder o interesse. Schrader não é Bigelow, e seu cinema estoico parece
não combinar com a energia raivosa das sequências de ação – vide a solução de
resolver o conflito final dos personagens em extracampo. Uma solução funcional,
até mesmo elegante, mas que revela que essa definitivamente não é a praia de Schrader.
First Reformed também tinha uma vertente do plano de uma conspiração política
que se infiltrava com o drama pessoal de crise de consciência – quase como um
elemento de filme B, uma trama detetivesca-rocambolesca não muito esclarecida,
que confunde o espectador mas que funciona para empurrar a narrativa para
frente. No entanto, me parece que esses dois eixos narrativos acabam sendo
desconjuntados, desviando do que Schrader sabe fazer melhor.
De todo modo, nessa opção por mostrar as reminiscências do passado da guerra, há ainda um último corolário ético, reservado para a conclusão: entre o passado de torturador e o futuro do menino sem perspectivas, Schrader deixa claro que só é preciso prosseguir mediante um acerto de contas: não é possível empurrar tudo para debaixo do tapete – lição importante especialmente para o Brasil de hoje. A conclusão moral do filme é que esse personagem só poderá amar verdadeiramente após livrar-se do seu fardo, por meio de um acerto de contas que surge, afinal, como incontornável.
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