(IFFR 2021) A MAN AND A CAMERA
Cobertura do Festival de Roterdã (IFFR 2021 Junho)
UM HOMEM E UMA CÂMERA
de Guido Hendrikx
Esse curioso documentário-de-garagem, que teve sua estreia mundial há poucos meses no CPH:DOX, é um notável representante do documentário contemporâneo, por se estruturar não num tema em si mas numa abordagem relacional. Esse filme-de-um-homem-só (utilizando a expressão da pesquisa de mestrado do cineasta Gustavo Spolidoro) parte de uma premissa bastante singular: o próprio realizador vai a uma cidade no interior da Holanda e bate à porta de pessoas desconhecidas com a câmera ligada, sem emitir nenhuma palavra, esperando ver como as pessoas reagem a esse gesto. O filme então, é um projeto de baixíssimo orçamento, firmemente calcado num dispositivo relacional.
O
título do filme claramente parece nos remeter ao clássico documentário de Dziga
Vertov (O Homem com uma câmera). No entanto, se Vertov buscava um método para
apreender o movimento do mundo e das cidades, Hendrikx possui um objetivo
claramente mais modesto: a possibilidade de um encontro por trás do artifício.
Por trás de
sua estrita adesão ao dispositivo, o que é fascinante nesse filme são as muitas
formas que estimulam que o espectador possa refletir sobre essa experiência. Um
desses elementos são as questões éticas, ou ainda, sobre a privacidade. É
curioso pensamos que o realizador opta por procurar as pessoas em suas casas,
no ambiente doméstico. Em entrevistas, Hendrikx conta que, num projeto anterior,
ele seguia pessoas num espaço público, nas ruas da cidade. Mas que era muito
mais intimidador e invasivo, pois as pessoas não tinham para onde fugir. Agora,
simplesmente as pessoas poderiam fechar a porta e se recusar a participar do
jogo.
Mas há
outras camadas. Filmar o inesperado, o imprevisto. Essa câmera ligada sem
permissão que invade a privacidade das pessoas. Esse realizador por trás da
câmera que não responde a qualquer pergunta. A insistência em permanecer
filmando em silêncio e sem reação expõe as pessoas a certo constrangimento. Ou
a uma sensação de distúrbio e de desconfiança (seria um assaltante? Seria um
maníaco?) – fico imaginando esse filme no Brasil de hoje, em que os contextos
sociais de violência quase inviabilizariam um filme desse tipo, ou penso no pequeno
gesto que Marcelo Pedroso fez em Câmera Obscura, o que lhe rendeu um processo
judicial. Muitas pessoas inicialmente riem mas depois começam a desconfiar. Há
um desejo de inocência, como se Hendrikx fosse um menino que simplesmente
propõe um jogo, uma espécie de brincadeira lúdica, sem qualquer propósito
aparente. Num certo momento do filme, a câmera observa as crianças brincando
livremente num quintal, aproveitando um dia de calor.
Em
entrevistas, Hendrikx conta que bateu em mais de trezentas portas, sendo que
oito o convidaram a entrar. Mesmo sendo um total desconhecido, e sem falar uma
única palavra, oito pessoas o convidaram a entrar em suas casas. Hendrikx chama
esse gesto de um milagre. Um encontro mediado pela câmera. Penso também em
Jonas Mekas, e como ele dizia que, como não falava inglês, as filmagens com sua
Bolex nos Estados Unidos eram uma forma de se conectar com as pessoas. Mas Hendrikx,
quase como um robô, não esboça nenhum tipo de reação, nenhum sorriso, nenhum
gesto. Fico pensando na imensa solidão de um filme como esse e em como, contra
todos os prognósticos, esse homem-câmera é convidado a entrar em uma casa. Uma
casa, um interior: um filme que também examina a intimidade e a privacidade do
ponto de vista dos ambientes domésticos.
Não
só Hendrikx-câmera é convidado a entrar como, ao fim do filme, ele parece ter
feito um amigo. Todos já se sentem quase à vontade com a presença desse
estranho desconhecido inofensivo. Ao final, o dono da casa precisa sair para
levar o filho à escola e deixa Hendrikx-câmera em casa. Ao ficar em casa, ainda
que só, o filme propõe uma inversão. Finalmente, essa câmera consegue habitar
um lar, conviver com um estado de afeto. Mesmo a aparência robótica desse
dispositivo-automatizado conseguiu estimular uma relação de afeto, que
conseguiu superar as naturais desconfianças, o medo da exposição, a falta de
retorno do convidado, a aparente falta de sentido da situação. A possibilidade
de surgimento da amizade (do afeto) diante dessas circunstâncias é o que há de
mais tocante nesse filme para além da mera investigação de um dispositivo. A
insistência do realizador em sua missão obstinada, geralmente sem resposta,
sendo por muitas vezes humilhado e agredido (até certo ponto de forma justa rs),
curiosamente pode nos fazer associá-lo como um pastor religioso. Mas uma
religião sem causa, sem promessa de fé nem paraíso eterno. Um filme sobre o
cinema como instrumento de mediação, sobre a fé no encontro mesmo diante das
circunstâncias mais improváveis.
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
CRÍTICAS DE FILMES
CAPITU E O CAPÍTULO, de Julio Bressane (BRA)
A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga (BRA)
A MAN AND A CAMERA, de Guigo Hendrixx (HOL)
Comentários