(IFFR 2021) A FELICIDADE DAS COISAS
Cobertura do Festival de Roterdã (IFFR 2021 Junho)
A FELICIDADE DAS COISAS
de Thaís Fujinaga
O longa de estreia de Thaís Fujinaga opta por uma vertente já com
uma certa tradição no cinema brasileiro contemporâneo, em torno das
dramaturgias do comum. A trama se desenvolve em torno do cotidiano de uma
família em sua casa de praia em Caraguatatuba, no interior de São Paulo: a mãe,
a avó e o casal de filhos pequenos. O pai, ausente, permanece na capital. A
família e as férias, no entanto, estão longe de ser um porto seguro: o filme examina
as tensões e as disputas no interior da família. Para isso, baseia-se na
construção de uma grande piscina no quintal de casa, ainda que a praia não seja
tão longe e ainda que não se tenha muito dinheiro para isso. A família é de uma
classe média baixa, aquela que tem carro e casa de praia, mas a casa está
caindo aos pedaços e enfrentam-se nítidas dificuldades financeiras.
Já por essa breve descrição, A
felicidade das coisas apresenta-se muito próximo a um filme brasileiro de
grande repercussão recente no mercado internacional: Benzinho, de Gustavo Pizzi, exibido no Festival de Sundance. Mas as
semelhanças entre os dois filmes não se resumem ao plot, em que se examinam os
conflitos entre uma família de classe média baixa que quer ir à praia rs, seus
sonhos de ascensão e os conflitos com os filhos que crescem. No fundo, as
semelhanças estão mais propriamente numa visão de cinema narrativo que utiliza
recursos ligados ao prosaico e ao comum como uma estratégia para atingir uma
certa camada de comunicabilidade sem deixar de se inserir num certo nicho de
cinema autoral.
São filmes tão próximos que muitas das virtudes e também dos
problemas de Benzinho aqui se
repetem, numa outra escala. Ao mesmo tempo em que revela uma dramaturgia
segura, com personagens e situações bem desenvolvidas, compondo um painel
afetivo mas também nada condescendente com as contradições internas dessa
pequena classe média, o filme também apresenta um olhar em torno de uma certa
superfície que impede que o filme se abra a situações que expandam sua
circunscrição estrita. Ou seja, no fundo temos um olhar que, buscando fugir dos
estereótipos, acaba mergulhando neles, tornando os personagens e as situações
apresentadas caricatos, sem densidade, quase como num raso humanismo.
De todo modo, especialmente para um primeiro filme, Fujinaga lida
com habilidade com os elementos cênicos, especialmente com os atores, o que
confere ao filme um tom homogêneo, com uma direção segura. No entanto, o filme
parece não desenvolver sua premissa, não avança de fato para o interior dos
personagens e para as suas contradições, mantendo-se a uma certa distância
confortável. O filme parece demais confortável e seguro de si para um primeiro
filme. O desafio de se realizar filmes em torno de uma dramaturgia do comum é
que há o risco de o comum se tornar simplesmente banal, isto é, é preciso que o
comum assuma um contorno poético, de modo que ganhe um contorno que aponte para
uma certa ritualística dos corpos, tempos e rotinas para além das situações em
si. As situações, se compõem uma estrutura de roteiro, são pouco potentes como
olhar para esse universo, que ressoa por demais controlado por um roteiro de
amarras. Se o filho sai com o pedalinho para além dos limites do clube, e na
noite seguinte foge para uma aventura com os amigos, o filme acaba nunca saindo
em nenhum milímetro das cercas impostas por si. Preocupada com o dinheiro para
pagar a piscina e as contas de fim do mês, a diretora-roteirista parece se
colocar do ponto de vista da mãe e não percebe que os filhos crescem e que
neles despontam qualquer desejo que aponte para fora daquela condição interna: faz
um filme por demais controlado e demarcado, o que no fundo é tudo o que não
deve ser um primeiro filme, e especialmente num festival como o de Roterdã, que
busca o futuro do cinema voltado à invenção e ao risco. O correto e preciso A felicidade das coisas pareceria melhor
exposto numa vitrine como Toronto ou Mar del Plata do que em Roterdã, caindo
como um corpo estranho, especialmente na Bright Future.
Em um certo momento do filme, o filho foge pelo breu da noite, e
mergulha num contato com a mata fechada, a água do rio, a amizade da juventude,
ou seja, uma possibilidade de sair daquele ranço da casa ou da família um tanto
chatas. Mas o menino também não responde às possibilidades, nem a narrativa. O
filme dá voltas em torno de si mesmo, sem saber o que fazer. Volta ao clube,
volta à praia. A mãe vê um casal na praia, mas permanece distante, não
interage, não se transforma. O menino volta com os amigos para o clube
elitizado que ele nem gostara, fora a piscina. Nesse momento curioso em que o
filme parece apontar a possibilidade de romper suas armaduras, parece como um
cachorro domesticado criado em casa que finalmente vai às ruas mas não sabe o
que fazer, como se portar. O personagem também não se transforma, as situações
não revelam potência para mergulhar em deriva. O filme não se joga da ponte com
o personagem, mas observa em conforto olhando nas margens. Não é que falte
risco ou coerência a A felicidade das
coisas, o que falta mesmo é aquele gosto pelo cinema, aquele gosto pela
vida, aquele desejo de ser menino e fazer alguma travessura. Excessivamente
consciente de seu lugar, A felicidade das
coisas mostra que o talento de Fujinaga só poderá avançar se ela
puder/quiser deixar muitas das suas relações de ancoragem para trás. O filme também
pode ser inscrito no corpo de um certo cinema paulista, em que listo filmes
como Mare Nostrum, de Ricardo Elias,
ou Pela Janela, de Caroline Leone,
que revelam essa mesma busca por um cinema mais inventivo, por meio de
personagens que dialogam com uma pequena classe média, mas que permanecem
ancorados numa certa relação de conforto que restringe seu campo, e que acaba
expressando uma certa repressão dos desejos.
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
CRÍTICAS DE FILMES
CAPITU E O CAPÍTULO, de Julio Bressane (BRA)
A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga (BRA)
A MAN AND A CAMERA, de Guigo Hendrixx (HOL)
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