(IFFR 2021): DIÁRIO FORTALEZA-ROTERDÃ - PARTE 4
COBERTURA DO FESTIVAL DE ROTERDÃ (IFFR 2021 JUNHO)
DIÁRIO
DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
DAMASCUS DREAMS, de Émilie Serri
AN UNUSUAL SUMMER, de Kamal Aljafari
Pois
aqui no meu sofá acalorado em Fortaleza, quis o destino, que sempre conspira a
favor, que o IFFR viesse até a mim, nesse estado de delírio cinético. Com a
vac-cine lag, as imagens e sons começam a delinear uma espécie de nuvem de tags
na minha cabeça em delírio. Talvez por todos esses efeitos, começo a me dar
conta como são diferentes os filmes entre si, mais do que nas edições
anteriores. Meu estado de confusão mental entra em ebulição.
O
cinema contemporâneo tem um certo quê de uma arte contemporânea, em que o
diretor-artista precisa partir de uma premissa que é um problema de pesquisa.
Ou seja, é como se o diretor, diante do panorama de possibilidades estilísticas
do cinema hoje, nesse mundo de cada vez maiores hibridismos e urgências,
tivesse que se posicionar com um ponto de partida que coloca uma questão para o
mundo e para o cinema de hoje. Ou ainda, dada a tradição do campo do cinema, e
dados os elementos postos em debate no curso do cinema contemporâneo, o filme
precisa ter um ponto de partida que instaure uma contribuição original dentro
do seu campo.
Posso
dar alguns exemplos. Damascus Dreams,
da canadense Émilie Serri (como o nome prenuncia, da parte francesa do Canadá),
tem sua família de origem síria. Seu filme está bastante bem circunscrito em um
campo específico do cinema contemporâneo: o documentário autobiográfico em
primeira pessoa, em estilo poético, em que a própria realizadora, ao buscar os
laços afetivos de sua origem étnica, também aborda na verdade questões
coletivas como as reminiscências das culturas diaspóricas, por meio de um olhar
íntimo sobre a identidade e a memória. A seleção do filme se justifica pela
habilidade como a realizadora domina os recursos desse campo, e pela delicadeza
de seu olhar poético sobre uma questão tão importante no mundo contemporâneo.
No entanto, o filme se insere confortavelmente em um campo já bastante
demarcado, sem provocar nenhum atrito, questão ou problema aos contornos já
estabelecidos no interior desse campo, de modo que seu impacto (por esse ponto
de vista) é reduzido. O filme está lá porque cumpre um papel de reforçar a
importância de um campo relevante no cinema independente contemporâneo, é bem
realizado, tem momentos tocantes, mas pouco acrescenta a um panorama de possibilidades
do cinema do futuro – meta principal de um festival como Roterdã, especialmente
em sua seção Bright Future.
Outro
exemplo seria An Unusual Summer, do
palestino Kamal Aljafari. Quase como uma peça de arte contemporânea, sua
principal contribuição está na originalidade do dispositivo, de forma que o
filme poderia ser tranquilamente uma instalação. Todo o filme apresenta imagens
de uma câmera de vigilância instalada pelo pai do realizador, que mostra
imagens da calçada da rua em frente à sua casa, que também serve como uma
espécie de estacionamento dos veículos do prédio em frente. A câmera foi
instalada por conta de um arrombamento de um veículo. No entanto, o que seria
um instrumento de vigilância acaba curiosamente assumindo um olhar poético por
parte do realizador. Essa é a originalidade de sua contribuição no contexto do
cinema contemporâneo. É quase um filme-de-arquivo com uma imagem de câmera fixa
(uma imagem precária, de um circuito fora do campo cinematográfico, produzido
previamente, sem nenhuma consciência de que essas imagens seriam utilizadas em
um filme), que passa a ser reapropriada, ressignificada, num gesto do
realizador que retira seu contexto de origem contaminado pela vigilância, e a
revaloriza, como um campo da dramaturgia do comum. Os breves momentos do
cotidiano em que os vizinhos passam, a pé ou de bicicleta, a rotina desse
pequeno local, alguns pequenos gestos passam a ser supervalorizados pela
câmera, que chega até mesmo a reenquadrar (em zoom) alguns movimentos distantes
na periferia do plano. O que é curioso em An
Unusual Summer, até mesmo pelo título, é certa relação que o filme
implicitamente desenvolve com o primeiro cinema – aquele gesto aparentemente
despretensioso do cinema dos Irmãos Lumière de simplesmente observar o
movimento do mundo na sua beleza de pequenos gestos. Ao mesmo tempo, essa
imagem despersonalizada acaba assumindo um olhar íntimo para o realizador pois
apresenta sua vizinhança, sua rotina e seus modos de ser, especialmente quando
percebemos que se trata de um material de arquivo dessa câmera instalada pelo
pai do realizador, já falecido. An
Unusual Summer não deixa de abordar questões sobre a memória e a identidade
da região do Oriente Médio, mas de forma muito mais original, complexa e sutil
que o filme de Serri. De todo modo, trata-se de um filme mais próximo do campo das
artes visuais do que do cinema contemporâneo, uma vez que a fruição em si do
filme é um tanto desinteressante em termos do desenvolvimento estilístico, mas
sua contribuição está na originalidade de sua premissa-dispositivo, e como ela
insere questões (ou seja, como parte de um problema de pesquisa) sobre o
estatuto da imagem na contemporaneidade, e como o filme ressignifica as imagens
de vigilância para um contexto afetivo, inserindo um olhar surpreendente e
inesperado para a sociedade palestina. Trata-se, portanto, de um filme barato,
com pouquíssimos valores de produção, mas que atrai a atenção de um grande
festival como Roterdã exatamente pelas características acima descritas. Nesse
sentido, An Unusual Summer tende a
chamar bem mais atenção que Damascus
Dreams.
IFFR 2021 #JUNHO
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
CRÍTICAS DE FILMES
CAPITU E O CAPÍTULO, de Julio Bressane (BRA)
A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga (BRA)
A MAN AND ACAMERA, de Guigo Hendrixx (HOL)
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