(IFFR 2021): DIÁRIO FORTALEZA-ROTERDÃ - PARTE 6
COBERTURA DO FESTIVAL DE ROTERDÃ (IFFR 2021 JUNHO)
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
BIRDS OF
AMERICA, de Jacques Loeuille
BERG, de Joke Olthaar
Um ponto em comum entre os quatro
filmes anteriormente citados é que se tratam de documentários. De fato, o
documentário é um eixo fundamental quando pensamos no cinema de invenção hoje,
porque o formato permite justamente problematizar as fronteiras entre o real e
o encenado, ou ainda, são filmes que falam sobre questões do mundo e da nossa
sociedade mas também lidam com questões específicas sobre a linguagem. Num
momento em que o mundo reflete sobre as fronteiras, são filmes que
desestabilizam a demarcação estrita de fronteiras. São filmes que
desestabilizam as heranças canônicas do cinema, em torno das identidades
prévias.
No entanto, o documentário é um campo
extenso, um horizonte heterogêneo e, acima de tudo, extremamente movediço. Existem
dois filmes curiosos que reafirmam e expandem essa campo pantanoso que é o
documentário, em termos de sua tradição mas também de seus desafios.
A princípio, fiquei assustado como um
documentário como Birds Of America foi
selecionado para o Festival de Roterdã. Trata-se de uma grande produção para um
documentário, com recursos da Arte e distribuído pela MK2 francesa. E um
documentário de estilística clássica bastante convencional, com narração,
entrevistas, imagens de belíssima fotografia como ancoragem, etc. No entanto,
por trás de seu tom extremamente convencional, surge uma abordagem inusitada. Birds Of America é um filme sobre a
história da civilização norte-americana mas contada como se fosse uma
contra-história, ou ainda, como se fosse escrita a contrapelo, como diria
Walter Benjamin. Claro, uma história crítica, porque contada pelos franceses
rs. Mas não somente isso. O filme tem como ponto de partida um artista. O
francês John James Audubon pintou aves no Oeste americano. Sua pintura era
vista como convencional, como mero registro de dezenas de aves, mas aos poucos
seu trabalho também começou a ser valorizado como artístico, pela graça dos
traços e das cores. De todo modo, Audubon pintou praticamente todas as espécies
de pássaros da Costa Oeste. Algumas delas permanecem hoje somente nos quadros
de Audubon, visto que a marcha do progresso resultou no extermínio de várias
dessas espécies. Desse modo, Birds Of
America utiliza como ponto de partida uma questão ecológica (o filme se
desenvolve como um barco que percorre as margens do Rio Mississippi) para
refletir como a história da civilização norte-americana é um percurso de
destruição da natureza. Nessa relação entre história e ecologia, Birds Of America atrai seu interesse por
meio de uma narrativa elegante, de belas imagens, apesar de seu tom
excessivamente convencional, especialmente para um festival do porte de
Roterdã.
A natureza ou a ecologia sempre foram
uma premissa cara aos documentários poéticos. Podemos dar vários exemplos,
entre os filmes de Joris Ivens, como Regen
nos longínquos anos de 1929, ou mesmo os extasiantes filmes de Artavazd Pelechian.
Berg, da holandesa Joke Olthaar,
parece dialogar com essa tradição. O filme é uma viagem visual impressionante
pelas altas regiões montanhosas. É um filme-de-paisagem com base na fruição das
imagens de uma fotografia exuberante em preto-e-branco. Não há, portanto,
informações quaisquer. Raramente vemos uma ou outra pessoa ao longe, sem
identificação, quase como se fosse um dos animais que insistem em sobreviver
nessas condições. É um filme de paisagem que parece com um filme de
arquitetura. O impressionante de Berg é
justamente como o filme se concentra nessa sensação de espanto diante da beleza
das paisagens naturais – e nada mais lhe importa. É, portanto, um trabalho mais
próximo ao das artes visuais, ou até mesmo, alguns diriam, ao da fotografia. O
tempo é uma variável importante em Berg,
assim como o som, mas é possível afirmar que eles estão em escala
desequilibrada quanto à importância visual da imagem, que ocupa toda a atenção
do trabalho de linguagem. Nada poderia ser mais anticonvencional, pensariam
alguns. Ao mesmo tempo, o prazer visual do filme não está muito longe da
sedução fotogênica de uma National Geographic, e seus destinos exóticos. No
entanto, a austeridade da materialidade física de Berg afasta uma tentação fotogênica-publicitária dessas imagens,
mas em alguns momentos chega a tocar essa possibilidade.
De todo modo, são dois documentários
curiosos por como dialogam com certas vertentes mais tradicionalmente
consolidadas no campo do documentário para levá-las para um lugar um pouco
diferente – diferente ma non troppo
rs.
IFFR 2021 #JUNHO
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
CRÍTICAS DE FILMES
CAPITU E O CAPÍTULO, de Julio Bressane (BRA)
A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga (BRA)
A MAN AND ACAMERA, de Guigo Hendrixx (HOL)
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