(IFFR 2021): DIÁRIO FORTALEZA-ROTERDÃ - PARTE 7
COBERTURA
DO FESTIVAL DE ROTERDÃ (IFFR 2021 JUNHO)
DIÁRIO DE
FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
AO LONGE MINHA SOMBRA VAGUEOU (FARAWAY MY SHADOW
WANDERED), de Liao Jiekai e Sudhee Liao
O DIA HOJE (AU JOUR D'AUJOURD'HUI), de Maxence
Stamatiadis
De todo modo, é muito louco sair de um
filme todo feito com uma câmera de vigilância nas ruas da Palestina e entrar
num filme de alta fotografia nas montanhas rochosas sabe-se-lá-de-onde. Os dois
filmes dialogam com o primeiro cinema, mas de formas abissalmente diferentes.
Esse é o tipo de experiência que se espera de um festival como Roterdã, que
busca apresentar um amplo panorama de possibilidades diversas para o cinema de
invenção na contemporaneidade.
Ainda quero permanecer um pouco mais
no campo do cinema documentário, examinando outros filmes que buscam justamente
problematizar as suas fronteiras, inserindo outras bordas de experimentação com
outras formas de expressão.
Faraway My Shadow Wandered, de Liao Jiekai e Sudhee Liao, é um filme
sobre um encontro. Junya Kobayashi abandonou a promessa de prosseguir os cultos
religiosos de seus ancestrais e decidiu morar em outra cidade. Num bar, por
acaso, conhece Sara Tan, uma estrangeira que busca novas paisagens para encenar
uma peça de dança contemporânea. É difícil precisar ao certo sobre o que é esse
filme, mas é certo que é algo que só seria possível sendo um filme da imensa
cultura oriental. Essa dificuldade de expressar os sentimentos, essa abordagem
espiritual a partir do silêncio e da observação. Enquanto Junya tenta acertar
as contas com seu passado, Sara busca o encontro preciso entre corpo e
paisagem. A dupla de realizadores de Singapura aborda, com uma enorme
singeleza, contornos íntimos da alma humana, expressos de maneira sutil, de
forma extremamente delicada. Essa melancolia que exprime o filme se revela
também pelo uso da paisagem e da luz: o filme inteiro coberto de neve, com uma
paleta de cores sóbria, entre o cinza e o marrom, quase monocromático. Faraway é um documentário mas também um
filme-ensaio sobre a relação entre o processo de criação e a vida, de um ponto
de vista transcendente, uma religiosidade terrena. Encontro entre masculino e
feminino, entre o passado e o futuro, entre a alma e o corpo. Também entre o
cinema e a dança. Sara dança entre a paisagem, repleta entre as ondas do mar e
o relevo rochoso – a dança contemporânea é parte expressiva desse filme, algo
raro no cinema oriental. O encontro é transformador, não apenas para os
personagens mas para o espectador. O filme se move, como um corpo que dança,
que encontra o seu próprio lugar no mundo, que dança como um movimento de
afinação do seu próprio espírito. O título (algo como “Ao Longe Minha Sombra Vagueou”) expressa essa beleza poética entre
o corpo e o espírito, com base no movimento. Esse belo filme tem uma beleza
discreta e serena, difícil de ser apreciada, mas absolutamente encantador, bebendo
na fonte da mais nobre arte oriental.
Um dos raros diálogos do filme me
chamou a atenção. No bar, Junya pergunta para seu chefe: como marinheiro, qual
foi o seu momento mais difícil no mar? Ele responde que foi lidar com as
pessoas, uma vez que, como o barco é pequeno, não há lugar para fugir e se
esconder, no meio de uma discussão. Em seguida, ele se lembrou de um caso em
que o motor apagou em pleno alto mar, e que os tripulantes tiveram que esperar
o curso do vento até chegar à costa, o que demorou semanas. Mas, ainda assim,
ele considera que o mais difícil foi lidar com o ego das pessoas. Nenhuma
atribulação é mais desafiadora do que a tarefa de conviver. Um pequeno conto
perdido no interior do filme. Nada mais oriental rs.
Já O
Dia Hoje (Au Jour D'aujourd'hui),
de Maxence Stamatiadis, surpreende pela sua exquisitice rs. Poderíamos ver o
filme a princípio como um documentário sobre a vida de um casal na terceira
idade, Edouard e Suzanne Mouradian. A primeira parte do filme apresenta o
cotidiano da vida do casal e seu convívio com os netos. Já nos surpreende a
forma inusitada como o casal vive: ele gosta de games violentos e troca
mensagens bizarras sobre a morte, e o filme apresenta diversas situações um
tanto desconfortáveis, por meio de uma linguagem de cortes rápidos, com planos
fechados que muitas vezes desorientam o espectador. Não se trata de um típico
casal de velhinhos e sua rotina bem-comportada rs. No entanto, o maior impacto
está por vir. Após a morte de Edouard, o filme se transforma completamente,
sendo encenado no futuro rs. Algo um tanto atípico para um documentário, ser
passado no futuro, como um filme de ficção científica rs. Suzanne, com saudades
do esposo, sentindo-se sozinha, passa a aderir a um aplicativo do futuro que
traz o seu marido de volta em três dias rs. O mais surpreendente e hilário é
que essa situação realmente acontece, por meio de um aplicativo bizarro, que
faz com que o marido retorne ao seu corpo, mas flutuando acima de sua cabeça,
quase aos moldes de uma auréola, um hilário símbolo de infinito que gira em
torno de si. Quando retorna, Edouard toma coragem para concretizar o que não
conseguiu fazer na sua primeira vida: matar as pessoas. Assim, esse velhinho
simpático se torna uma espécie de serial killer. Por meio dessa narrativa
bizarra, que combina o documentário, a ficção científica e o cinema B de
gênero, O Dia Hoje faz uma crítica
bem humorada às relações humanas na contemporaneidade, a falta de afeto entre
pessoas próximas e o efeito das redes virtuais na intimidade. No entanto, a
forma despojada, fora de qualquer tom convencional, como o filme trata essas
questões surpreende o espectador. O Dia
Hoje consegue estabelecer uma atmosfera própria, um tom particular, que
sustenta o seu interesse. Algumas vezes, pelas situações bizarras, ele quase se
parece com um filme de John Waters. É um filme deliciosamente impuro, com um
humor negro sobre o nosso mundo contemporâneo. De todo modo, é o avesso da
profunda delicadeza espiritual zen do filme da Singapura analisado anteriormente.
IFFR 2021 #JUNHO
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
CRÍTICAS DE FILMES
CAPITU E O CAPÍTULO, de Julio Bressane (BRA)
A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga (BRA)
A MAN AND ACAMERA, de Guigo Hendrixx (HOL)
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