(IFFR 2021): CAPITU E O CAPÍTULO
Cobertura do Festival de Roterdã (IFFR 2021 Junho)
CAPITU E O CAPÍTULO
de Júlio Bressane
Este é o mais novo capítulo na imensa filmografia de um dos mais
legítimos representantes de nosso cinema de invenção. Capitu e o capítulo toma como ponto de partida uma espécie de
adaptação livre do mais conhecido romance de Machado de Assis. Mas, em se
tratando de Bressane, não se trata exatamente do que se espera de uma
adaptação: é apenas um ponto de partida para que o cineasta possa realizar uma
espécie de filme-ensaio sobre alguns temas recorrentes: a relação entre amor e
desejo, a falência do controle do instinto, as dobras entre o masculino e o
feminino, entrecruzado com reflexões sobre o próprio processo de criação.
Vemos, então, o próprio Machado, representado de forma elegante
por Enrique Diaz, em seu ateliê de
criação, enquanto escreve ensaios e recita, para a câmera, reflexões não
propriamente sobre Casmurro ou mesmo sobre seu próprio processo de criação mas
sobretudo sobre a literatura brasileira. Machado reflete especialmente sobre a
contribuição e o destino dos poetas românticos brasileiros, como Álvares de
Azevedo e Junqueira Freire, que criaram grandes obras mas morreram com pouco
mais de vinte anos. É curioso pensarmos que o septuagenário cineasta, que
realizou mais de vinte filmes (já perdi a conta), se volta para as primeiras
obras dos jovens poetas brasileiros de dois séculos atrás. Se a sociedade
contemporânea impera a imposição de pautas em regime de urgência, Bressane busca
deslocar o seu olhar para uma investigação sensível do processo criativo numa
linha completamente antípoda às urgências geralmente impostas pela mídia ou
pelos modismos do momento.
Bressane permanece fiel a um desejo de criação absolutamente livre
e independente, prosseguindo sua trajetória de mais de cinquenta anos. O
Casmurro de Bressane acaba se tornando uma espécie de alter ego do próprio
cineasta, em torno de suas reflexões e delírios. Assim, é possível identificar
uma série de paralelos com projetos anteriores de Bressane, que ressoam de
formas múltiplas nesse Capitu. Devemos nos lembrar não apenas que Bressane já
havia adaptado o universo machadiano em Brás
Cubas (1985) mas em como o filme revisita e reatualiza diversas das pulsões
do cinema de Bressane em diferentes momentos. Para estimular essa continuidade,
que surge mais como sugestão do que como relação estrita, surgem na tela
trechos de diversos filmes de Bressane, quase com fios desencapados em torno da
memória afetiva do realizador. Ao mesmo tempo, Bressane prossegue uma linha de
filmes mais recentes, como o homem emudecido diante da volúpia feminina (Garoto), as nuances entre a relação de
um casal na esfera doméstica (Beduíno)
ou o cinema-ensaio de fundo infinito (Sedução
da Carne).
Ao mesmo tempo, se Bressane prossegue e recicla eternos temas, Capitu e o Capítulo nunca deixa de nos
surpreender e nos encantar. Não deixa de ser curioso vermos o nosso maior
representante do cinema de invenção filmar uma produção da Globo Filmes, com
cenas de estúdio. A filmagem em estúdio em fundo infinito, algo que Bressane já
havia experimentado em Sedução da Carne,
insere o cineasta numa nova zona de texturas, um lugar indefinido, com jogos de
luzes e movimentos precisamente demarcados. Ao mesmo tempo, a coprodução com a
Globo parece ser um arranjo de produção cavado por alguns de seus colaboradores
que trabalham na emissora, uma vez que o filme é o antípoda do que se poderia esperar de uma obra da Globo Filmes
ou de qualquer debate sobre uma suposta “estética televisiva”. Para aqueles que
estudam a intermidialidade ou a intertextualidade no cinema, este é certamente
um prato cheio. Capitu é também um
filme sobre o processo artístico, pela forma livre como Bressane problematiza
as fronteiras entre o cinema, o teatro, a literatura, a dança, a música, a
pintura e a arquitetura. Um dos principais pontos de interesse do filme é a
forma livre como o filme transita entre diferentes modos de expressão
artística, como um jogo hipnótico que desestabiliza o espectador. Ao mesmo
tempo que Bressane nos intimida com seu rigor estilístico e sua grande erudição
formal, seu cinema possui um certo desejo de inocência, ou ainda, um certo
humor combinado com leveza, uma irreverência que busca evadir o filme de
qualquer significado teórico mais profundo, que procura desestabilizar a razão
como cerne da produção artística e mergulhar o espectador na possibilidade de
uma experiência, sobretudo afetiva. Podemos listar algumas cenas nesse sentido.
Os dois casais que giram numa dança improvisada num pequeno salão de estúdio. O
homem que desce as escadas cambaleantes como uma criança-Nosferatu
expressionista de coração partido. A incapacidade dos homens em lidar com as
contingências do mundo, absortos e inebriados pela beleza e pelo encanto das
mulheres. Mariana Ximenes, meio como Cleópatra, que se recusa a sair de sua
cama, num dos momentos mais mágicos do filme, quase como uma pornochanchada
inocente (nada inocente, toda inocente).
É curioso pensamos nesse cinema de Bressane tendo sua estreia
mundial no Festival de Roterdã, num momento em que o Brasil agoniza, que o
cinema brasileiro fenece. A liberdade, o cinema. Mais de cinquenta anos de um
processo criativo que dá às costas para o mercado, para a mídia, para o
reconhecimento fácil, para as alianças oportunistas, para o chauvinismo de
nossos grupos sociais. A liberdade, o cinema. Para poucos, muito poucos, cada
vez menos, cada vez mais. Mais uma vez, uma vez outra, uma outra vez. Com ou
sem Globo Filmes, com ou sem Roterdã ou Locarno, com ou sem Ancine, pouco importa:
o cinema de Bressane permanece vivo contra todos os prognósticos. E se termino
esse texto com essa espécie de exegese moralista, em nenhum momento o filme ou
o próprio autor cogita em fazer esse discurso apologético: a política e a
resistência do cinema de Bressane é continuar simplesmente girando em torno de
si, teimando em ser coerente e livre ainda assim, mesmo diante de tudo, mesmo
diante do fim.
IFFR 2021 #JUNHO
DIÁRIO DE FORTALEZA-ROTERDÃ
PARTE 4 – O CINEMA-DE-PROBLEMA-DE-PESQUISA
PARTE 6 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRADIÇÕES
PARTE 7 – O DOCUMENTÁRIO E SUAS TRANSIÇÕES
CRÍTICAS DE FILMES
CAPITU E O CAPÍTULO, de Julio Bressane (BRA)
A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga (BRA)
A MAN AND A CAMERA, de Guigo Hendrixx (HOL)
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