(Tiradentes 2021): ROSA TIRANA
MOSTRA AURORA
ROSA TIRANA
de Rógério Sagui
Depois do cinema experimental de ORÁCULO, realizado entre Berlim e Floripa, a Mostra Aurora propõe uma guinada, até certo ponto surpreendente, com a exibição de ROSA TIRANA, realizado na caatinga de Poções, Sudoeste da Bahia. Surpreendente porque ROSA TIRANA é um filme de narrativa mais linear, com elementos típicos do cinema nordestino, associados a uma cultura regionalista e sertaneja, por meio da história de uma menina tenta escapar da seca e caminha pelo sertão em busca de Nossa Senhora Imaculada.
É curioso perceber as semelhanças
e diferenças entre AÇUCENA e ROSA TIRANA, dois filmes realizados no interior da
Bahia por diretores estreantes, novatos no circuito de grife dos festivais
brasileiros de autor. Enquanto AÇUCENA mostra domínio dos recursos mais típicos
do cinema contemporâneo, em especial a indistinção entre ficção e documentário,
tendo participado de laboratórios internacionais, com recursos da Ancine e
agradecimentos a curadores importantes no cenário nacional, ROSA TIRANA foi
realizado com apoios locais e recursos de rifas, incorporando os elementos mais
tradicionais da cultura nordestina. Mas, para os que julgam (eu, inclusive rs)
que o regionalismo está ultrapassado, que a cultura do Nordeste se moderniza e
complexifica, avançando para além do cenário sertanejo, ROSA TIRANA é comovente
por promover uma aposta frontal por um cinema tipicamente regionalista,
mostrando que o estilo em arte nunca é anacrônico, mas se repete e se renova,
assim como as estações do ano, a seca e a chuva, a vida e a morte.
É formidável ver um filme tão
promissor quanto ROSA TIRANA sendo realizado no Sudoeste da Bahia, na pequena
Poções, cidade a cerca de 70km de Vitória da Conquista, terra de Glauber Rocha.
Mas nesse filme até um tanto ingênuo (de novo, assim como AÇUCENA, uma aposta
convicta na ingenuidade, algo que muito me interessa), não há o tom
político-revolucionário do cinema de Glauber ou do Cinema Novo. Talvez seja
possível ver algo de um VIDAS SECAS no filme de Rogério Sagui, mas na verdade
seu objetivo é menos o de promover um exame dos impactos sociais da seca mas
percorrer um percurso pelo imaginário, visto pelo ponto de vista dessa menina
que sai de casa e avança para o mundo. O universo sertanejo é visto, portanto,
com uma aura de fábula infantil, rompendo com a tendência do realismo social
miserabilista, e investindo num tom poético e lúdico. O filme começa numa
atmosfera de penitência mais próxima ao realismo, com a rotina da família na
casa sertaneja, aproximando o vazio da rotina sem maiores perspectivas ao tom
de filmes como O GRÃO, de Petrus Cariry. No entanto, algo muda após a decisão
da menina de abrir uma porta – uma porta que abre o filme para o imaginário.
Talvez falte a ROSA TIRANA uma
maior densidade nos elementos de dramaturgia, especialmente o roteiro, já que o
percurso da menina pela caatinga e as situações encontradas (o homem das
bonecas, as criaturas da terra) não parecem surgir com muita potência. O que
nos encanta mais no filme é justamente os momentos em que o diretor abandona
qualquer perspectiva de situar o espectador numa história e simplesmente
mergulha em compor climas e ambiências. O filme é muito composto pelo uso
extremamente presente da paisagem, ainda que não seja propriamente um uso
criativo, mas de grande beleza de composição pictórica e de luz. E também pela
música, que faz o filme ter uma sonoridade marcante, por vezes se aproximando
de um musical. Os tempos mais largos, o certo minimalismo, a presença cativante
da jovem atriz mirim conferem ao filme um tom cinematográfico, um olhar
delicado e talentoso do realizador em mergulhar nesse universo, mesmo com
referências já tão matizadas. Apesar de nitidamente realizado com poucos
recursos, é notório o esmero do diretor em cada detalhe da realização – os
graciosos créditos iniciais, os objetos, as cores, a formidável paleta de cor
de todo o filme – o que confere a algumas cenas um tom absolutamente
encantador. Há uma forte crença nessa encenação, uma aposta frontal nesse
suposto anacronismo, nos valores do sertão, o que torna o filme em muitos
momentos uma aventura comovente. Menos preocupado em ater-se aos recursos
típicos do contexto de grife, e simplesmente mergulhar de cabeça na sua própria
verdade, nas referências de seu próprio universo, ROSA TIRANA é comovente
justamente por abrir outros olhares para o sertão, ainda que mantendo seus
princípios de base. Existe uma poesia aberta em ROSA TIRANA mas também uma
certa melancolia, uma dor, uma solidão expressa pelos passos da personagem.
ROSA TIRANA é notável talvez não
por sua estrutura geral mas justamente por esses momentos em que o filme se
entrega ao prazer de construir climas e cenas de forma lúdica: a mãe que canta
no umbral da porta quase como se fosse uma despedida (meu momento preferido),
um monólogo muito forte de José Dumont (ainda que o impacto se reduza por uma
montagem um tanto excessiva, que opte por quebrar em vários planos), uma câmera
que surpreendentemente passeia esfuziante pela simples festa multicolorida em
Bodocó, a expressão dos rostos da família de retirantes que socorre Rosa, a
maravilhosa cena do cortejo com as crianças de roupas azuizinhas, o belo gesto
de Rosa de deixar a flor aos pés da Santa, etc.). Creio que ROSA TIRANA ficará
em minha memória mais por esses momentos de rara beleza singela do que por sua
dramaturgia de feitio regionalista.
ROSA TIRANA mostra a enorme
potência que desponta no interior do país. É incrível que um filme como esse
seja todo realizado no interior do Nordeste – algo que me interessa em
especial. Espero voltar a esse filme em um outro momento. Acho também belo o
gesto da curadoria de Tiradentes em se abrir para um filme como esse que, em
certas medidas, destoa do protótipo gestado no evento.
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