(Tiradentes 2021): ORÁCULO
MOSTRA AURORA
ORÁCULO
de Melissa Dullius & Gustavo Jahn
A seleção de ORÁCULO para a Mostra Aurora da Mostra de Tiradentes é muito
interessante por várias perspectivas. Ainda que Melissa Dullius e Gustavo Jahn
sejam conhecidos no campo do cinema, tendo filmes selecionados em diversos
eventos desde o curta ETERNAU, como a Semana dos Realizadores ou mesmo o
Festival de Berlim, ORÁCULO é um projeto nitidamente voltado ao cinema
experimental. É importante assinalar esse ponto, porque existe ainda uma falta
de clareza por boa parte do público (e mesmo da crítica) do que seja de fato o
cinema experimental. Muitos julgam que Tiradentes é uma “mostra de cinema
experimental” simplesmente porque os filmes fogem dos modelos clássicos de
dramaturgia baseados em roteiro-e-decupagem, ou ainda, em modelos de produção
mais tradicionais (hierarquia definida entre membros da equipe, políticas de
financiamento, etc). No entanto, em termos estritos, a Mostra de Tiradentes,
sob a direção curatorial de Cleber Eduardo, pelo menos na Mostra Aurora, não
foi uma mostra de filmes experimentais, mas mais voltada a uma vertente da
dramaturgia contemporânea ligada ao chamado “cinema de fluxo” ou ainda à
diluição das fronteiras entre ficção e documental.
Dessa
forma, salvo engano, acredito que ORÁCULO é o primeiro filme experimental
selecionado para a Mostra Aurora, mesmo depois de mais de dez anos. Esse fator
deve ser levado em consideração por vários motivos: o primeiro é o da abertura
de espaço para um tipo muito particular de cinema, na contramão do cinema
militante ou identitário, conforme uma vertente muito presente no cinema
brasileiro contemporâneo “pós-novíssimo”. E o segundo é que, com esse gesto, a
Mostra de Tiradentes acaba criando zonas de cinza com outras mostras
recém-criadas no Brasil, dado o perfil de crescimento da rede de festivais de
cinema no país, com um perfil alternativo ao modelo hegemônico, especialmente
os festivais Dobra e Ecrã, que tem como principal vitrine o cinema experimental.
Vejo esses movimentos de embaralhamento extremamente positivos, mexendo nas
zonas de conformação dos festivais de cinema do país, e abrindo outros espaços
de visibilidade para diferentes tipos de filme.
Isto
posto, escrever sobre ORÁCULO requer um exercício ampliado da crítica
cinematográfica que, ainda muito conformada em suas zonas de conforto,
naturalmente tem dificuldade para analisar filmes que a desafiem em seus
pressupostos de base. Lembro, com isso, do enorme desafio enfrentado por Jonas
Mekas, em suas colunas no Village Voice, em que se dispôs a escrever
semanalmente sobre os filmes da vanguarda norte-americana a partir de meados
dos anos 1950. Ora, para um novo cinema, era preciso uma nova crítica, e os
elementos de escrita da crítica precisavam também se abrir para o que estava em
jogo com o filme. (Com isso, busco jogar luz para a ENORME contribuição de
Mekas TAMBÉM COMO CRÍTICO e não “apenas” como realizador.)
Assim,
pela falta dessas referências, é comum (natural até) que boa parte da crítica
busque uma relação de ancoragem de ORÁCULO com algumas referências mais
conhecidas no campo cinematográfico. Por exemplo, por um lado com um filme como
CINCO (FIVE), de Abbas Kiarostami – já que Oráculo também se organiza em poucos
planos-sequência autônomos (seis em vez de cinco). Ou então, com o cinema de
James Benning, dado o seu minimalismo cênico e a opção pelo plano de longa
duração.
No
entanto, acredito que essas relações mais confundam do que esclareçam o que
está em jogo com ORÁCULO, por se prender a referências externas que fogem da
análise interna dos elementos em cena. Por exemplo, se ORÁCULO guarda do filme
de Kiarostami a proposta de um exercício formal em que se problematiza o
cruzamento entre o improviso e a marcação, de outro lado, há duas diferenças
fundamentais: a primeira, em relação à duração do plano, previamente demarcada
pelo tamanho do rolo de 16mm (FIVE é um filme absolutamente influenciado pela
transição para o digital, enquanto ORÁCULO é uma aposta convicta pela película
cinematográfica); e a segunda, em relação a seu título, que aponta para um
aspecto de transcendência/metafísica, enquanto o título de Kiarostami aponta
para uma relação formal, um aspecto materialista ligado à própria estrutura do
filme. De um certo lado, o terceiro plano de Oráculo (analiso o filme como os
seis planos que compõem o corpo do filme em si, isto é, excluindo os créditos
iniciais/finais) pode ser visto até mesmo como uma paródia do famoso primeiro
plano de FIVE, substituindo o toco de madeira pelo corpo do performer.
Quanto
ao cinema de Benning, as diferenças não poderiam ser maiores e mais
expressivas. Pois o cinema de Benning tem como fonte o cinema experimental
estruturalista, ou seja, a potência de cada plano surge em sua relação com um
macroprojeto muito particular, minucioso e preciso de investigação. Ou seja, se
cada plano é sempre autônomo no cinema de Benning, ele sempre deve ser visto
numa relação precisa com seu projeto geral, daí o rigor de seu projeto
estrutural. A beleza do projeto desse extraordinário cineasta (uma delas, pelo
menos rs) está em como seus filmes aliam um enorme rigor com um projeto
minimalista que também incorpora o imprevisível movimento do mundo, conferindo
a esse enorme esforço estrutural uma grande leveza – e, claro, como ele também
aborda, de formas indiretas, as transformações sociais e econômicas da paisagem
norte-americana.
Desse
modo, não vejo ORÁCULO como herdeiro dessa vertente estruturalista, pois falta
ao filme um projeto totalizante que o associe diretamente a uma estrutura,
ainda que requisitos formais (como a duração da bobina de 16mm ou o formato 4x3
da bitola) estejam presentes no filme, influenciando diretamente sua
composição. As relações, portanto, entre os seis planos, são fluidas,
espaçadas, livres, ainda que os cineastas proponham, na sua sinopse, uma
relação alargada com os modos de ser, estimulada pelo título não formalista, de
modo que os próprios diretores nomeiem que o filme “é universal nas lembranças
que faz ecoar, comuns a todas as pessoas: família; começos, fins e recomeços;
dores e traumas, e desejo intenso de vida e de sentido”. Outra peça acessória a
ser levada em consideração foi o texto produzido pelo ator Juarez Nunes –
publicado junto ao filme na própria página de exibição do mesmo na própria
Mostra de Tiradentes, e só por isso o considero como uma peça acessória. Nesse
texto, Nunes arrola um conjunto de sofisticadas referências, que vão de
Deleuze/Spinoza a Gumbrecht (tenho a sorte – ou o azar – de conhecer esse
palavreado pelo fato de ter me tornado um “professor quase doutor” na área de
Comunicação rs), para falar de algo muito simples e intuitivo: a possibilidade
de a arte fugir do modelo da representação para algo relacionado à vivência, ou
seja, de o ator não interpretar um papel conforme previamente apresentado num
roteiro-base, mas vivê-lo a partir de uma experiência sensível, ainda que essa
vivência não esteja diretamente ligada à sua autobiografia mas seja estimulada
por um jogo apresentado como ponto de partida pelo diretor (como um
dispositivo).
Dessa
forma, mesmo sem precisar citar Deleuze rs, está claro que ORÁCULO é um filme
que estimula uma percepção do papel do ator por uma perspectiva performática
ou, se preferirem, fenomenológica – e não por um prisma ligado à dramaturgia de
representação teleológica.
Acontece
que esses estímulos provocados pelo jogo entre a direção e os atores podem ou
não funcionar. Os jogos propostos devem ser dimensionados não apenas pelos
estímulos utilizados como ponto de partida, mas especialmente em seus efeitos
ou seus impactos. Ou seja, devemos então considerar se esses estímulos
provocaram potência que afetaram o espectador, sejam em seus sentidos
sensoriais sejam em seus modos de ser mais íntimos (a memória, a
transcendência, etc, como o título e a sinopse dos diretores sugerem).
É
nesse ponto que resulta um sentimento de frustração ao curso e ao final de
ORÁCULO. Ainda que a proposta ousada seja interessante, especialmente dado o
panorama de boa parte da militância estrita do cinema brasileiro contemporâneo,
falta a ORÁCULO uma maior potência para a produção dos sentidos desejados pelo
filme. A falta de coesão dos elementos internos, a falta de beleza ou
inventividade na combinação dos elementos internos propostos pelo filme, a
falta de ritmo (ainda que se entenda a aposta pela autonomia dos planos, a
montagem não potencializa a relação de planos, mas parece simplesmente uma
justaposição de planos sem potência, de modo que cogitamos que o projeto poderia
ser até melhor desenhado se houvesse uma exposição no circuito expandido em
cinco telas), a falta de um desenho sonoro mais sugestivo, a introdução de
caracteres extradiegéticos num momento específico num filme de proposta
imagética ligada à película, ou seja, com um processo fotoquímico referente ao
real, alteração busca de diafragma num plano de contemplação de paisagem,
etc.), entre muitos outros elementos que poderiam ser citados, provocam ao
final da projeção de ORÁCULO uma sensação de frustração, pois o filme fica a
meio do caminho entre as várias possibilidades de aprofundar sua premissa e
promover um mergulho mais aprofundado (seja em suas constituições formais ou
sensoriais seja em seus aspectos existenciais). Curiosamente sinto falta que
ORÁCULO seja mais radical no que se propõe, acabando por simplesmente se
contentar por flanar por sobre uma superfície sem dobras – mesmo entendendo que
em muitos casos o que existe de mais profundo é a pele. Mas não é esse o caso.
Ou
seja, para resumir esse arrazoado já bastante extenso rs de palavras sobre o
filme, se fugirmos da racionalização para a experiência sensível, a melhor
crítica de ORÁCULO foi a de um amigo meu que me confessou ao final da sessão
“infelizmente o filme não bateu em mim”. É isso rs.
Comentários