(Tiradentes 2021): KEVIN
MOSTRA AURORA
KEVIN
de Joana Oliveira
Por mais que com o tempo a gente vá adquirindo certa
experiência, há certas ocasiões em que fica difícil encontrar o tom adequado
para escrever. É difícil expressar a frustração diante de um filme construído
com tanto cuidado e delicadeza, especialmente quando se trata de um filme em
primeira pessoa, que lida com aspectos delicados da intimidade, relativos a uma
diretora que você conhece e admira pessoalmente.
Entramos então em um campo ético, notório no cinema
brasileiro quando, no nosso minifúndio, o crítico conhece o realizador – ou
mais propriamente, no campo do cinema em primeira pessoa. Pois algumas vezes é
tênue o ponto em que estamos a criticar os valores do filme ou os valores de
quem o realizou. Mas se um artista resolve realizar um filme em primeira
pessoa, ou seja, decide se ex-por na tela, de algum modo deve-se estar
preparado para abrir um debate que entrecruza cinema e vida.
Talvez para mim essa relação não seja tão estranha pelo fato
de eu também ter a experiência de realizar filmes – e alguns deles também são
filmes em primeira pessoa. Entendo que, quando a vida se projeta para a tela,
ela se torna uma obra – e como toda obra, pode/deve ser avaliada. No entanto,
evidentemente quando se trata de obras que entrecruzam a vida, é preciso um
pouco de cuidado.
A essa altura, é bom descrever o filme: a própria diretora
Joana Oliveira viaja a Uganda para reencontrar sua amiga de muitos anos Kevin
Adweko, que agora tem três filhos. Elas se conheceram vinte anos antes como
estudantes na Alemanha, mas, agora, por volta dos quarenta anos, se questionam
o que fazer da vida.
KEVIN teria muitos elementos que, à primeira vista, seriam
um prato cheio para tudo o que me encanta no cinema contemporâneo: um filme
sobre os encontros, sobre a amizade como uma veia afetiva, sobre o entrecruzamento
entre cinema e vida, a indefinição de fronteiras entre a ficção e o
documentário, a dramaturgia do comum, o cinema em primeira pessoa, etc.
Além disso, são indiscutíveis o cuidado e o esmero de todo o
processo delicado de realização do filme. É incrível perceber como o “cinema
afetivo” aperfeiçoou um método seguro para estabelecer uma relação fluida entre
ficção e documentário, de forma que KEVIN mostra um domínio absoluto dessa nova
gramática, com uma enorme leveza que caracteriza o encontro documental entre
duas amigas, sendo que uma delas é a própria diretora, mediante uma estrutura
(de produção, de dramaturgia) nitidamente pré-arranjada. É incrível como esse
arranjo estimula a enorme desenvoltura das personagens, respirando uma leveza,
uma fluidez que combina de forma orgânica essa relação tênue entre cinema e
vida. Temos a sensação de que o filme vai sendo feito à medida que as
personagens vão vivendo, como se a câmera simplesmente acompanhasse a vida
dessas sequências fortuitas, apesar de sabermos que nada é fruto de total
improviso. É muito curioso como esse cinema desenvolve uma outra
“transparência”, mas diferente das estratégias gramaticais do cinema clássico,
baseado na decupagem e na invisibilidade do corte.
Isto posto, por que então o belo e delicado KEVIN me soou
tão frustrante? Porque, mesmo com todas essas boas intenções, o filme promove
um encontro de pouca potência. Tão preocupado com a boa execução de todas as
suas prerrogativas, o filme, extremamente correto, se fecha diante do mundo, da
possibilidade do encontro, do sopro de vida que é o que no fundo dá sentido a
que um projeto como esse seja realizado na forma de um semidocumentário.
Ora, a viagem e o encontro entre Joana e Kevin não podem ser
indiferentes às suas diferenças – uma brasileira branca que viaja para a África
negra. No entanto, a afetividade do encontro envolve o filme numa excessiva
bolha de autoproteção, de modo que a realizadora se blinda por trás do
dispositivo do próprio filme, que serve como uma âncora, à qual a realizadora
se agarra com receio de naufragar. Não há assim nenhum conflito, nenhuma
dúvida, de modo que a realizadora se mantém extremamente estabelecida em sua
zona de conforto, assim como todo o filme. A África que vemos no filme é um
retrato domesticado, sem nuances, em que vemos de mero soslaio, como turistas
envergonhados – sempre por meio de vendedores ou empregados sem voz, com os
quais Joana não troca uma única palavra de verdade, a não ser com sua
amiga-guia Kevin. Ficamos com a impressão que mesmo num filme tão problemático
quanto GABRIEL E A MONTANHA, a África era vista com mais curiosidade, nem que
seja pelo menos pela paisagem exótica. Da mesma forma, a cultura negra. Fica a
sensação de que KEVIN, sobre a amizade entre uma brasileira e uma africana,
permanece como um filme nem brasileiro nem africano, mas um filme branco
europeu. Uma viagem de turismo muito bem confortável e comportada entre duas
amigas que celebram sua amizade tomando um chá das cinco tipicamente britânico
(ou algo do tipo alemão), cuidadosamente arquitetado para ser bem recebido pelo
público dos festivais internacionais – provavelmente, de Berlim.
Não diria que KEVIN é baseado num falso encontro, pois é
nítida a afetividade desenvolvida pelo filme entre as duas protagonistas, mas
sim que o problema de KEVIN é que o dispositivo encontrado resultou em um
encontro de pouca potência. A diretora estava por demais fechada em seu mundo
particular, por demais convicta à adequação de seu dispositivo, para propor
situações que fossem de fato transformadoras. Ficamos com a sensação de uma
certa futilidade, de que as personagens estão totalmente absortas numa
atmosfera pequeno-burguesa, em seus conflitos individuais, em uma ideia de
família – o que nos faz lembrar das velhas lições do marxismo clássico de que,
independentemente da etnia e da região geográfica, a eterna divisão do mundo é
uma divisão de classes sociais. Mesmo com suas diferenças, as duas amigas no
fundo parecem muito iguais, parecem compartilhar a mesma visão de mundo – a comunicação
sem ruídos entre as duas ressoa uma proposta de universalidade que considero
extremamente perigosa, um conceito, aliás, tipicamente europeu.
Faltou a KEVIN esse desejo pela vida, essa vontade de
realmente deixar o processo do encontro ser incorporado ao filme, essa
curiosidade em acessar camadas mais profundas sobre sua amiga, sobre a África,
sobre ser negro. Ou seja, uma aposta pelo risco, uma vontade de gritar, de
andar descalço, um desejo qualquer de ser surpreendido pela vida. KEVIN me
parece um filme tímido, um filme receoso de dar esse passo em direção ao mundo,
e que se agarra ao conforto do dispositivo como caminho seguro para sua
adequação – esse é o sentimento que resume minha frustração ao ver o filme,
pois entendo que esse na verdade é o oposto do que deseja o cinema
contemporâneo: o gosto por observar o movimento do mundo e incorporá-lo à
escritura do filme. Talvez a maior transformação que Oliveira se permita se
resuma em seu ato final: cortar as tranças de seu cabelo. Mas até que ponto, de
cabelo aparado, Joana está realmente transformada? Sinto imenso pesar que um
filme com tão notáveis premissas e uma equipe e realizadora tão talentosas não
tenha tido a coragem de enfrentar a correnteza do rafting, preferindo
permanecer na sempre segura terra firme. O que de fato KEVIN procura
transformar?
Comentários