(Tiradentes 2021): AÇUCENA
MOSTRA AURORA
RESISTIR, EXISTIR, INSISTIR: O TEMPO, O AR, O ESTILO, A ÉTICA DE AÇUCENA
Recentemente
um amigo me convidou para um projeto em que ele convidava cinéfilos para gravar
um vídeo de 30 segundos comentando um filme de sua preferência. Achei o projeto
interessante, mas por que 30 segundos? Para falar de algo que me é tão caro,
não conseguiria me expressar num intervalo de tempo tão curto – tempo
geralmente destinado aos comerciais de televisão para vender produtos. Num
mundo cada vez mais ligado à aceleração, à eficiência e ao controle do tempo,
não vejo sentido falar sobre as coisas do coração utilizando códigos
indiretamente ligados à massificação do rumo das coisas. Muitas vezes, até
mesmo sem querer ou sem que nos apercebamos disso, mesmo com as melhores das
intenções, acabamos reproduzindo os mais perversos elementos de dominação. Se
quisermos mudar o mundo, se ainda acreditamos que isso é possível, temos que
estar atentos aos pequenos gestos, e como os elementos de dominação se
infiltram em nossos modos de ser de forma naturalizada. E nossas ações, em vez
de reproduzir essas estruturas, precisam respirar outras possibilidades de ser.
Pensei
nisso ao ver AÇUCENA, de Isaac Donato. O filme parte de uma premissa que
poderia ser, nas mãos de um cineasta pragmático regido pelos códigos da
“eficiência”, a de um curta-metragem: a preparação do aniversário de Açucena
que, ao completar 67 anos, comemora todo ano seu aniversário como se tivesse 7
anos. Ao final do filme de cerca de 70 minutos, entenderemos melhor o porquê.
No entanto, o aniversário em si da personagem e o motivo pelo qual essa senhora
permanece criança não são propriamente o objetivo central do filme. Tanto que
boa parte do filme se concentra nos preparativos para a festa, muito mais do
que a festa em si.
Me
parece que esse motivo aparentemente exótico surge como uma isca, quase como
uma espécie de macguffin, espelhado pela sinopse brilhante, para o que é mais
importante em Açucena: acompanhar os modos de ser de uma comunidade. A festa
passa a ser então um motivo para que essa comunidade celebre os seus próprios
modos de ser.
Para
isso, é fundamental o papel do tempo. Por meio dos preparativos, na verdade
acompanhamos, de forma sutil e delicada, a afetividade das relações dos membros
de uma comunidade. Para ver Açucena, é preciso não ter pressa – é preciso vê-lo
no mesmo ritmo em que um senhor pinta de branco o portão de uma casa, em que
uma senhora desce as escadas, ou que coloca as roupas nas bonecas, uma por uma.
Pois o tempo é a matéria-prima que permite que as relações entre essas pessoas
escapem do modelo do pragmatismo, do trabalho como acumulação de capital, da
aceleração dos nossos regimes perceptivos – e nos permita ver a vida como se
caminhássemos em um jardim.
O
diretor Isaac Donato mostra que conhece bastante bem um conjunto de
instrumentos relacionados à “virada afetiva” de meados dos anos 2000 –
elementos geralmente associados à Mostra de Tiradentes, de modo que a Mostra se
torna de fato o lugar privilegiado para a estreia desse filme. A dramaturgia
que incorpora aspectos de mise en scène ficcional numa escritura de base
documental, o olhar para uma comunidade periférica por uma via positiva, a
opção por uma dramaturgia do comum, a relação umbilical entre cinema e vida,
etc. Ao mesmo tempo, Donato utiliza esses recursos não meramente para
diluí-los, ou seja, não como mero recurso de estilo ou apetrecho para se
inserir numa grife autoral, mas claramente por compreender que esse “método” é
o mais adequado para nos fazer mais próximo da ambiência buscada para o filme.
Pois Açucena é um filme de cinema porque busca, acima de tudo, a busca por uma
ambiência, para além do tema retratado – algo formidável quando levamos em
conta a base documental do filme.
Donato,
portanto, não quer “inovar” – o “novo”, a “inovação”, ou a utilização de
qualquer recurso que vise a seduzir, impactar ou impressionar o espectador
seriam termos completamente apartados do que está em jogo na festa de Açucena,
na reunião dessa comunidade. O trunfo de Açucena – o papel do tempo, a forma
delicada como o diretor se aproxima daquele universo – está justamente na sua
ÉTICA, muito mais que na sua estética.
Não
é que Açucena não esteja preocupado também com os modos de ver. É
impressionante a maturidade no uso sóbrio dos elementos da linguagem
cinematográfica. O tempo é realçado pelo uso da câmera fixa. O som é um
elemento ativo de todo o filme, assim como o extracampo. Ou seja, não é que
Açucena não esteja preocupado com as questões estilísticas, o que quero dizer é
que o estilo não é mera forma narcisista de inserir o diretor num circuito de
grife mas um modo para nos fazer adentrar de forma eticamente adequada no que
está em jogo com o filme. O estilo de Açucena não aponta somente para si mesmo
mas para o mundo.
Açucena
poderia ser um filme sobre a religião. Claro, não deixa de ser isso – é um
filme sobre a religião – mas ela se incorpora aos poros do filme de maneira
transversal: as religiões, acima de tudo, são os modos de ser. Ou seja, Açucena
não é um filme não é um filme SOBRE um culto religioso, mas uma obra que
incorpora o próprio sentido da crença no cotidiano, nos nossos modos de ser. A
religião não é tema, mero objeto do filme, mas a religião PERPASSA a própria
estrutura do filme de forma orgânica, como se fosse seu próprio ar.
Ao
abrir a Mostra Aurora com esse filme, a curadoria de Tiradentes parece mandar
um recado: pois Açucena mostra que, ao contrário do que vários críticos (e
realizadores) recentes vêm apregoando de forma pejorativa, o “cinema afetivo”
não é um mero modismo ou “ciclo”, que precisa acabar logo para começar outro,
mas na verdade está longe de se esgotar, pois ele se renova, repetindo-se
apenas para se renovar, como cada dia, como cada aniversário de Açucena.
Aos
que julgam que esse cinema já é velho, velho como Açucena, ou ainda, que o
novíssimo já virou anacrônico, que está “parado no tempo”, que é preciso
insurgir-se por meio de cantos de guerra, que só é possível construir a partir
da destruição ou do conflito, a velha Açucena é política sem querer sê-lo mas o
é simplesmente porque resiste (porque existe, porque insiste), pela sabedoria
de sua ingenuidade, em suma porque mantém viva a criança que ainda reside em
cada um de nós.
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