(IFFR 2021): O CACHORRO QUE NÃO SE CALA
FESTIVAL DE ROTTERDAM 2021
BIG SCREEN COMPETITION
O CACHORRO QUE NÃO SE CALA
de Ana Katz
(por uma forma discreta de estar no mundo)
Quando
assistimos a filmes nos festivais de cinema – e em especial em festivais
internacionais de prestígio, como é o caso de Rotterdam – acabamos nutrindo a
expectativa de assistir a grandes filmes que se impõem pela suntuosidade de seu
estilo. Ou seja, filmes que nos impressionam pela originalidade como o diretor
exibe o seu estilo, como uma marca ou um traço inconfundível de sua autoria. Os
festivais de cinema muitas vezes se confundem com festivais de estilo, em que, na glamourosa passarela dos festivais,
desfilam as principais grifes de autores que buscam impressionar o espectador
exibindo as suas mais extravagantes marcas.
Desse
modo, dois filmes, que por acaso assisti em seguida, me impressionaram justamente
pelo oposto da tendência acima, ou seja, por recusar esse caminho de chamar a
atenção para si por meio do espalhafato: o argentino O cachorro que não se cala, de Ana Katz, e o australiano Amigos e estranhos, de James Vaughan.
Vou
começar pelo singelo filme de Ana Katz. O filme começa com um grupo de vizinhos
preocupados com um contínuo grunhido de um cachorro de um dos moradores. Essa
lamúria interminável parece ser um sintoma de depressão, já que o animal
permanece solitário por muitos anos. Poderíamos pensar que o filme seria sobre
a relação de um homem com seu cão, mas, à medida que o filme prossegue,
percebemos que não se trata apenas disso: esse é apenas um ponto de partida
para expressar um sentimento de angústia mais amplo. O filme apresenta alguns
episódios esparsos na vida de um homem por volta dos seus trinta anos, em
empregos temporários, que simplesmente busca tocar a vida adiante, sem grandes
perspectivas. Muda de emprego e de casa; tenta conhecer alguém, ter um
relacionamento. O filme de Ana Katz reflete, então, de forma delicada, sobre a crise
desse adulto sem grandes perspectivas. Ele acompanha de bem perto o personagem,
mas ele permanece quase sempre em silêncio, um tanto opaco, como se fosse uma
espécie de cachorro calado que observa o desenrolar de sua própria vida. No
entanto, o que é curioso no tom que Katz imprime ao filme é que há uma certa
leveza: não se trata de um filme totalmente fechado por dentro, enclausurado
numa angústia rigorosa. A leveza da estrutura do filme dialoga com o próprio
gesto do personagem. Ele não fica trancado em casa, mas interage com pessoas e
situações, mas ainda que persista uma grande solidão dentro de si. É a mesma
coisa com a própria estrutura do filme: Katz faz um filme leve, em que a certa opacidade
do personagem nunca é um mero refúgio ou redoma do mundo. Isso fica muito claro
quando o filme, dialogando diretamente com os impactos da pandemia, mostra, em
seu terço final, que as pessoas passam a conviver com espécies de máscaras que
funcionam quase como pequenos capacetes transparentes, ligados a tubos de
oxigênio. O protagonista observa as pessoas em suas redomas como um espelho
desse ensimesmamento que reina em suas vidas e parece não se inserir na rígida
observância desses protocolos de segurança.
A leveza
de O cachorro que não se cala, como
se os seres humanos ou os filmes pudessem aprender com os animais, portanto,
não esconde sua profunda melancolia diante do rumo das coisas, sua proposta de
promover um certo retrato das relações humanas no mundo contemporâneo, e sua
aposta pela solidão como sintoma do rumo das coisas. No entanto, não é
fatalista: o personagem busca viver e amar, busca prosseguir sua existência
ainda assim.
Mas, como
dizíamos, é notável a estratégia de Katz em manter o próprio filme com essa
aparência leve e discreta, sem apontar necessariamente para si, assim como seu
personagem. Seu personagem não se considera o centro do mundo, não quer
promover revoluções, não quer convencer ou transformar ninguém, quer apenas
sorver sua existência e tentar lidar com sua solidão buscando interagir com o
mundo. A discrição do estilo de O cachorro
é, portanto, uma aposta ética de Ana Katz para lidar com o excesso de
competitividade do mundo contemporâneo, que invade os modos de ser não apenas dos
funcionários das grandes empresas mas de todos nós, inclusive (ou talvez
especialmente) os artistas. Para tanto, contribui muito a bela atuação,
discreta e serena, de Daniel Katz, não apenas irmão mas parceiro habitual da
diretora, com quem roteirizou um de seus filmes, Sueño Florianópolis, curiosamente um filme que explora a ainda tão
mal compreendida relação entre brasileiros e argentinos.
O que me
interessa em O cachorro é sua
serenidade diante do aparente vazio do mundo, sua aceitação zen de nosso perene
sentimento de frustração. É como o filme compreende sua melancolia, mas ainda
assim não desiste de tentar viver uma felicidade possível. Como combina os tons
em preto-e-branco com um certo humor. Como há no filme uma certa ingenuidade
como combate à competitividade e aceleração do mundo contemporâneo (algo que me
interessa muitíssimo e também se revela pelo expressivo uso de desenhos com tom
poético infantil inseridos ao longo do filme). Ou seja, como a sua forma
discreta, recusando um estilo autocentrado que aponta para si, é uma forma ética
de mostrar a possibilidade de outra forma de estar no mundo, para além da
competitividade do capitalismo contemporâneo.
É belo e
surpreendente que o Festival de Rotterdam se interesse por um filme tão
discreto quanto esse, e que perceba e incentive sua contribuição no panorama do
mundo em que vivemos.
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