(IFFR 2021): MADALENA
TIGER COMPETITION
MADALENA
de Madiano Marcheti
Assim como Carro Rei, o outro filme brasileiro presente no Festival de Rotterdam 2021, Madalena, longa de estreia de Madiano Marcheti, também busca examinar, de forma nada convencional, as contradições das estruturas da sociedade brasileira que esmagam as diferenças. Apesar disso, as estratégias que os filmes utilizam para dar a ver essas tensões são quase abissalmente distintas. Enquanto Carro Rei dialoga com o cinema de gênero de Carpenter com elementos de cinema fantástico, Madalena opta por uma linguagem típica do cinema de fluxo contemporâneo, a partir de lacunas e esvaziamentos. Ou ainda, enquanto Carro Rei propõe um ambicioso desenho de inclinação sociológica mesmo a partir de uma alegoria de base fantástica sobre as origens do totalitarismo, Madalena prefere observar como os impactos desse mundo opressor se infiltram nos modos de ser do cotidiano.
Como já
se expressa pelo título, o filme é sobre Madalena. Mas nunca vemos a protagonista,
que permanece sempre no extracampo. Ou melhor dizendo, nem isso. A constante
presença de Madalena se manifesta por meio de sua ausência. O filme investiga o
impacto do desaparecimento de Madalena no cotidiano de pessoas próximas. A
dramaturgia de Madalena é rarefeita:
não sabemos exatamente quem é Madalena, o que faz, ou quais são as
circunstâncias precisas de seu desaparecimento. O filme dispõe um conjunto de
pistas, que não sabemos se são falsas ou não. Espraia-se uma certa atmosfera de
mistério, mas não o suficiente para instalar o filme numa ambiência do cinema
de gênero, pois não chegam a surgir pistas que nos levem a elucidar o destino
da protagonista. (Não são pistas no fundo, nem peças – não há propriamente uma
teleologia). O filme não é composto de peças que se encaixam ou não para dar
sustentação ao drama principal. Estamos numa zona do desconhecido: o filme está
permeado de lacunas que não são preenchidas pela narrativa.
No
entanto, Madalena permanece lá. Madalena
(o filme) é, portanto, sobre os vestígios de Madalena na vida, nos corpos, nos
olhares, nos desejos e nas carências de três pessoas tão diferentes que
cruzaram o seu caminho. Mesmo que aparentemente invisibilizado socialmente, o
corpo de Madalena permanece lá, estirado sobre o campo de soja. Sua presença
insiste em permanecer, ressoando seja no olhar culpado dos assassinos ou dos
omissos, seja nas lembranças suaves das que insistem em se entregar ao afeto
ainda assim.
Madalena é uma delicada
investigação dos vestígios daqueles que foram, daquilo que insiste em permanecer
mesmo que se tente aparentemente sufocar ou fazer esquecer. O desaparecimento
de Madalena me faz lembrar dos corpos mutilados pela Ditadura Militar, que
ainda permanecem presentes entre nós.
No
entanto, o filme não procura oferecer uma leitura pedagógica da sociedade ou da
história do Pais, mas apenas sugere como a violência se espraia nos nossos
modos de ser. De todo modo, resta ao espectador permanecer como as emas nas
folhagens, que levantam a cabeça (longa) percebendo que algo surge no
horizonte, mas, insuladas em suas solidões no extenso campo verde, não
conseguem agir para além do seu espanto, e não conseguem perceber o que
persiste para além do seu campo de visão. Sentem, no entanto, que há algo que
as afeta.
Seria
possível desenvolver Madalena a
partir da vitimização de uma personagem excluída por uma condição identitária ou
ainda a partir desse esvaziamento narrativo lacunar. No entanto, o que é
formidável no filme de Marcheti é como ele consegue impregnar o filme não
simplesmente de um sentimento de vazio, mas de uma angústia, de um desejo de
percurso, por uma procura que sempre se revela incompleta. Por exemplo, dentro
do seu confortável carro, o filho do fazendeiro passeia à procura de um socorro
externo que no fundo expressa suas angústias interiores, numa relação sugestiva
e delicada que me lembra do também sul-matogrossense A outra margem (2015, belo
curta de Natália Teresa.
Madalena é permeado por uma
atmosfera delicada que preenche o filme dessa inquietude controlada dos
personagens, de uma certa impotência em libertar-se de suas aparências. Mas o
faz sem nunca adentrar propriamente numa chave propriamente psicológica. O
mérito de Madalena reside em como o
realizador aborda os modos de ser da sociedade patriarcal do Centro-Oeste do País,
de uma cultura conservadora, associada economicamente ao agronegócio e
culturalmente ao sertanejo, mas sempre de forma sutil, sem os lugares comuns
das abordagens sociológicas ou psicológicas mais elementares.
Por isso,
Madalena não é um filme multiplot.
Poderíamos pensar que, à moda dos filmes de Iñárritu, ao final da terceira
história descobriríamos como essas personagens se cruzam para solucionar o
desaparecimento da protagonista. Mas definitivamente não é esse o caso aqui. Não
se trata de resolver o mistério como parte do plot, mas sugerir que o mistério se
infiltra nos modos de ser, naturalizando-o como o medo que se impõe aos afetos
da vida.
Assim, é
muito belo o terceiro ato do filme, não apenas por recusar o alinhamento da urdidura
do plot, mas o de propor essa relação delicada entre o cinema e a vida, de uma
forma menos esquemática. Ainda assim, a vida continua. Um colar mergulha nas
águas do rio como um gesto de despedida, um gesto que me lembra como Dona
Bastu, no maravilhoso Girimunho (2011),
de Helvécio Marins e Clarissa Campolina, se despede do esposo falecido
ofertando suas roupas ao mar. Como um rio, Madalena
é feito de fluxos, de camadas que convivem, não sobrepostas, em que mergulhamos
e saímos transformados, sem que percebamos muito bem por meio da razão sua
misteriosa essência.
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