(IFFR 2021): CARRO REI

FESTIVAL DE ROTTERDAM 2021
BIG SCREEN COMPETITION

CARRO REI

de Renata Pinheiro



OS CARROS ASSASSINOS, ELES VIVEM 

Parábola da ascensão do totalitarismo


 

CARRO REI – segundo longa-metragem solo de Renata Pinheiro depois de AMOR, PLÁSTICO E BARULHO, e outros filmes codirigidos na sempre presente parceria com Sérgio Oliveira, que agora assina roteiro e produção – é um filme provocativo, uma reflexão alegórica quase explícita sobre as origens do totalitarismo no Brasil de hoje.

Uno (menino com nome de carro que nasceu dentro de um) não quer dar continuidade aos negócios de seu pai, dono de uma pequena empresa de carros (uma mistura de uma oficina mecânica com uma companhia de táxis), e ingressa na Universidade para estudar agrobotânica. No entanto, ele tem o dom de conversar com os carros, e, ajudado pelo seu tio mecânico Zé Macaco, acaba transformando o carro da família no sedutor mas tirânico Carro-Rei, uma criatura diabólica que irá liderar uma revolta popular de cunho totalitário.

Por esse arremedo um tanto atabalhoado de sinopse, é possível perceber que CARRO REI incorpora elementos do “filme B” pra examinar questões prementes da sociedade contemporânea, mas que acabamos não conseguimos deixar de pensar no contexto específico do Brasil. É interessante perceber como o filme utiliza elementos do cinema de gênero e do cinema fantástico, com um pé no filme B mas ao mesmo tempo oferece uma proposta de reflexão política sobre a sociedade contemporânea.

O filme propõe uma ambiciosa parábola política sobre o Brasil de hoje, em especial como o ingênuo e bem intencionado Uno acaba capturado por um projeto que se revela totalitário. O interessante em CARRO REI é que o filme promove um exame das origens da ascensão do totalitarismo “de baixo para cima”, ou seja, como emanação de um desejo por reconhecimento e poder das classes médias baixas, e não “de cima para baixo”, como mero arranjo das elites políticas em torno de reuniões de gabinete, como, por exemplo, um filme como DEMOCRACIA EM VERTIGEM.

CARRO REI é assim muito interessante por propor uma reflexão aguda sobre o momento político que estamos vivendo no Brasil, por oferecer outras nuances de complexidade de nossa sociedade para além do discurso de golpe institucional. Ou seja, o filme propõe uma análise de nossa situação conjuntural sem reduzi-lo a um simples golpe mas de como um modo de ser autoritário se infiltrou em nossa sociedade, adquirindo legitimidade.

Existem muitas nuances no roteiro de CARRO REI, que não irei adentrar aqui para não comprometer a fruição do filme. Mas, ao mesmo tempo, ainda que desperte questões muito interessantes e pertinentes sobre as atuais contradições da sociedade brasileira, o filme acaba não tendo fôlego de aprofundar suas premissas, bastante ambiciosas. O filme acaba soando um tanto esquemático, quando os personagens acabam definidos como espelhos de classe, como meras funções ilustrativas do discurso promovido pelo roteiro, faltando densidade, nuances e sutilezas que caracterizem seus atributos individuais, ou seja, falta autonomia e liberdade aos personagens e à narrativa, cada vez mais presa a seus atributos de “tese sobre o Brasil de hoje”. Por outro lado, existem cenas hilárias, que certamente conferem ao filme um tom provocativo/polêmico, com analogias sexuais e nacionalistas.

Ao mesmo tempo, é curioso como o filme propõe, em termos de linguagem, uma referência direta a um certo cinema dos anos 1970/1980. Em especial, CARRO REI dialoga com o cinema de John Carpenter, sendo uma espécie de combinação quase explícita entre CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO (1983) com ELES VIVEM (1988). As referências a esse cinema não acontecem somente por questões temáticas do roteiro, mas são explícitas por utilizarem diversos elementos de linguagem – paletas de cor, movimentos de câmera, fusões, etc – que nos fazem remeter a um look vintage, um tom até mesmo meio fetichista de emular uma atmosfera de um certo cinema, que tem suas origens no cinema B mas que incorporam elementos do cinema dos estúdios, numa estrutura narrativa do cinema de gênero, de maior apelo comunicativo, buscando equilibrar aspectos autorais com uma proposta também comercial.

É curioso como CARRO REI aponta para os perigos da “terceira via” política, ou seja, como ela pode ser usada, à sua revelia, para acabar incentivando a ascensão da extrema-direita, mas, ao mesmo tempo, o filme utiliza uma linguagem cinematográfica típica de uma terceira via, sem contestar frontalmente as estruturas de base da dominação da sociedade ou do cinema hegemônico, transformando seu potencial político num palatável e agradável espetáculo cinematográfico. Talvez assim o tom político de CARRO REI chegue a mais pessoas. Ou então é apenas um discurso para ganhar prestígio no campo do cinema e participar dos festivais internacionais, sem no fundo mudar muita coisa. Não é possível afirmar muito bem, talvez os dois. Há muitos impasses no projeto político de CARRO REI. Vejo o filme, até mesmo pela referência explícita a Carpenter, algo totalmente ausente nos curtas e longas anteriores de Pinheiro (mesmo os realizados em parceria com Oliveira), como uma ressonância direta de BACURAU. As contradições do interessantíssimo CARRO REI sugerem que o enorme sucesso do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles provavelmente irá influenciar em muito os rumos do cinema pernambucano.

 

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