VITALINA VARELA
VITALINA VARELA
de Pedro Costa
É incrível perceber o caminho de aperfeiçoamento na imensa
trajetória do cineasta português Pedro Costa. A partir do irremediável NO
QUARTO DA VANDA, em 2000, Costa encontrou uma assinatura inconfundível no
cinema contemporâneo, em que funde documentário e ficção para lidar com as
vidas dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal. NO QUARTO DA VANDA, um dos
mais importantes filmes dos últimos vinte anos, e que deixou marcas profundas
também no jovem cinema brasileiro de garagem, é um filme extremamente corajoso,
porque Costa abandonou seu antigo modelo de produção para se debruçar,
praticamente ele e uma câmera, nos corredores e esguios aposentos das casas de
Fontainhas. Ao mesmo tempo em que prosseguia essa linha anterior, JUVENTUDE EM
MARCHA propunha uma guinada em outra direção. O rigor do enquadramento,
movimentos e posição de câmera inseria uma rebuscada perspectiva formal. Não é
que NO QUARTO DE VANDA também não o fosse uma experiência visual sofisticada,
mas em JUVENTUDE EM MARCHA esse rigor assumia uma proporção quase épica. CAVALO
DINHEIRO aprofunda ainda mais os rumos abertos pelo filme anterior.
VITALINA VARELA prossegue essa mesma ambição épica ao observar a
vida desses imigrantes cabo-verdianos. No entanto, com um trabalho ainda mais
preciso e radical. O trabalho de corpo e voz dos personagens assume uma grande
presença cênica. Os tempos alargados, em gestos profundamente marcados,
distanciam o filme do naturalismo, apesar de ser filmado com as pessoas e as
coisas daquele lugar. A iluminação também reforça um tom claramente
antinaturalista. Há um tom cerimonioso mesmo quando se falam de coisas aparentemente
banais. Ou ainda, um certo tom ritualístico, nos tempos, nas pausas e nos
gestos.
O filme é sobre essa mulher Vitalina Varela, que retorna a
Portugal para ver o marido, mas chega tarde mais, depois de sua morte. O filme
é, portanto, sobre o luto dessa mulher, seu tempo de espera nesse país que
nunca foi o dela. Essa sensação de estrangeiro e de solidão. Essa busca por
conforto (em vão).
VITALINA VARELA é o mais “Tourneuriano” dos filmes de Pedro Costa.
Como Costa já se declarou grande admirador desse diretor norte-americano, sinto
que o filme ecoa especialmente dois filmes de Tourneur: I WALKED WITH A ZOMBIE e STARS IN MY CROWN.
Do primeiro, Costa evoca o tom misterioso e ritualístico – um filme soturno
sobre se apaixonar pelo desconhecido – e pelo destino como eixo que atravessa o
corpo desses personagens em transe. O transe pode ser uma boa chave para
adentrarmos esse filme de Costa – uma experiência menos narrativa e quase
hipnótica. Já de STARS IN MY CROWN penso na reflexão sobre o conflito entre o
terreno e o sagrado, especialmente na crise do pastor representada pelo grande
Ventura. Por mais que o intangível e o sagrado sejam cada vez mais presentes no
cinema de Pedro Costa, há também a
consciência de que as coisas precisam ser resolvidas neste nosso mundo mesmo,
um desejo de materialismo.
Costa é sem dúvida o maior herdeiro do cinema de Straub-Huillet.
Herdeiro tanto no sentido do que o cinema político pode (fugindo das cartilhas
que representam os pobres como meras vítimas miseráveis) como especialmente em
propor uma forma de encenar em que o gesto (corpo e voz) de personagens comuns
seja ressignificado pela dimensão artística do mito.
Às vezes também nos perguntamos se Costa anda se repetindo, ou se
ele está indo longe demais. Há em alguns pontos de VITALINA uma certa tendência
ao formalismo. É possível que nos perguntemos se ele não está a exigir demais
de todas aquelas pessoas. De qualquer forma, VITALINA VARELA talvez seja a mais
bem-acabada proposição do cinema de Pedro Costa, até esse momento.
E para os que podem achar que o ranzinza Costa está começando a se
repetir, somos surpreendidos pelo final. Que final! Um momento em que as cinzas
e o tom noturno do filme cedem espaço para o céu. O céu abre uma nova
perspectiva no cinema de Pedro Costa. Uma casa a ser construída por um jovem
casal – me lembrei não sei porque do final de BARONESA, de Juliana Antunes – um
filme que guarda certa herança do “método Costa”. É muito bonito que, logo após
mais uma morte, Costa abra uma janela impensável para o seu cinema – uma janela
para a luz natural, para a reconstrução das coisas, para a vida que se percebe
para além de seu jogo interno de cartas muito bem marcadas.
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