Sete anos em maio
Sete anos em maio
de Affonso Uchoa
SETE ANOS EM MAIO comprova o caminho de
amadurecimento da filmografia de Affonso Uchoa. SETE ANOS EM MAIO, assim como A
VIZINHANÇA DO TIGRE, busca uma proposta de cinema político ao acompanhar as
vidas de jovens atingidos pela violência e pela injustiça em Contagem, Região
Metropolitana de Belo Horizonte.
O filme se divide em três partes: uma parte
que eu diria central (a entrevista/diálogo), um prólogo e um epílogo.
O prólogo e o epílogo resgatam uma ideia de A
VIZINHANÇA – a de que a brutal violência do real pode ser subvertida pelo
cinema transformando-a numa espécie de jogo. O jogo, uma brincadeira, no
sentido benjaminiano – assim como a arte, o próprio cinema – é uma forma de
sobrevivência, de encenar como lúdico aquilo que poderia apontar para a morte.
O jogo é uma forma de permanecer viva a inocência da infância mesmo diante do
desmoronamento. Na primeira parte, Rafael e seus amigos reencenam um duro
relato que aconteceu com Rafael, mas como se fosse uma brincadeira entre
meninos, um jogo de polícia-e-ladrão.
O epílogo – desconcertante – retoma essa
proposta, ao encenar um jogo de vivo-ou-morto, em que um policial é o dono da
voz, e os meninos da periferia tentam sobreviver ao jogo. A duração (o jogo
dura) e os movimentos dos corpos garantem uma dura materialidade que dá
concretude a esse misto de violência e ingenuidade.
O bloco central é um longo monólogo de Rafael
dos Santos, relatando um caso bárbaro de violência policial que transformou sua
vida. Ele nunca se recuperou e talvez nunca se recupere desse choque. O
monólogo é visto num longo plano de câmera fixa, numa noite em torno da
fogueira – esse fogo que arde no meio da noite fria, diante da precisa e linda
fotografia de Lucas Barbi. É impressionante como Rafael dá esse depoimento –
“quase” como um ator. A ênfase aqui está no “quase”: não chega a ser um
depoimento como nos documentários tradicionais – ele narra a sua própria
história, como uma narrativa. É impressionante a singeleza da mise en scène
encontrada por Affonso para dar corpo a um sentimento tão íntimo e difícil de
ser revelado para uma câmera. Rafael, no entanto, não demonstra raiva: seu
timbre de voz assume um tom grave, pausado e reflexivo, como se ele estivesse
num outro momento, já amadurecido após todo o acontecimento. Não há, portanto,
melodrama – não há choro, lágrimas, catarse. O movimento de Affonso se dá numa
direção contrária à espetacularização da violência ou da mera vitimização dos
oprimidos, como vemos, por exemplo, nas reportagens televisivas. O tom seco e
sóbrio do relato aproxima o filme de um Wang Bing, de HE FENGMING. Grande parte
do mérito do filme é de deixar Rafael falar, de abrir espaço para a
possibilidade do relato, mas entendendo que o relato realmente terá potência a
partir do momento que se transforma com a presença de uma câmera, ou seja,
incorporando o relato às características da gramática cinematográfica. O relato
ganha potência cinematográfica, mas não porque é embalado belamente pelos
artifícios da fotografia ou de uma câmera complacente, mas porque a gramática
do cinema permite que o relato possa extrapolar sua própria essência e se ver
transformado numa narrativa coletiva, ou seja, parte de um próprio processo
interior de Rafael em se perceber como parte desse sistema desigual e ainda
assim sobreviver a ele, mantendo sua humanidade.
Mas quase ao fim do relato há algo que o transforma.
A câmera fixa corta para um contraplano e percebemos que na verdade ele não faz
o relato somente para a câmera mas na verdade, ele está a conversar com um
amigo, Wederson (Neguim) – um dos meninos de A VIZINHANÇA DO TIGRE, agora anos
mais velho. Quando Rafael conversa com Neguim – e não somente dá uma
“entrevista” para a câmera – percebemos essa dobra ambígua entre a ficção e o
documentário num dos recursos gramaticais mais simples do cinema (um
campo-contracampo). Mas percebemos mais do que isso: Rafael não é uma exceção,
um caso fortuito, mas um exemplo de
inúmeras mutilações e violências provocadas pelo Estado policial. Wederson
também é uma das vítimas desse estado de exceção. Quando Rafael conta essa história
para um dos seus, ele, por meio também da arte do cinema (ou, como dissemos, do
jogo), tenta se libertar dos seus fantasmas mas também compartilha um
sentimento de uma comunidade. Sua história, então, passa da dimensão individual
para a coletiva. Trata-se de uma conversa, e não de um mero relato para uma
câmera.
É notável como Uchoa articula esses
sentimentos sobre uma comunidade atingida pela violência a partir de uma forma
de encenar bastante contemporânea, entre o documentário e a ficção, dialogando
e avançando em relação a seus trabalhos anteriores. Mas mais ainda me
impressiona a maturidade da mise en scène, adotando um tom sóbrio que o
aproxima de um certo minimalismo cênico. Essa sobriedade – que torna a mise en scène
de SETE ANOS EM MAIO bastante diferente do gesto espontâneo de A VIZINHANÇA DO
TIGRE – me parece aproximar, de formas misteriosas, o cinema de Uchoa com o de
Pedro Costa. É certo que SETE ANOS EM MAIO não é VITALINA VARELA com seu
formalismo milimetricamente marcado, mas há algo de muito comum que aproxima os
dois filmes: a necessidade de falar do luto e de como a vida prossegue ainda
assim, a de como usar a voz e o corpo dos personagens locais, mas de como a
gramática do cinema pode tornar essa voz mais forte, ainda que assumindo toda a
sua fragilidade. A incrível intimidade que Uchoa atinge em SETE ANOS EM MAIO
está proporcionalmente relacionada com sua consciência de que é preciso evitar
a catarse ou o melodrama, que é preciso não apenas mostrar a dor, mas
transformá-la, por meio do cinema, em instrumento de consciência de uma
condição social desigual, para que, ainda assim, possamos sobreviver à
barbárie.
O humanismo do cinema de Uchoa espelha a sua
recusa à barbárie ou ao espetáculo. Apesar de cruelmente atacado pela polícia,
Rafael dos Santos Rocha não se transformou num Coringa.
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