O CLUBE DOS CANIBAIS
O CLUBE DOS CANIBAIS
de Guto Parente
Os últimos filmes de Guto Parente
(Pérola, Ezequiel e Inferninho) estão todos relacionados ao tema da casa. Ou melhor,
tratam de personagens que resistem a um mundo excludente buscando um equilíbrio
enclausurado. Não é que a cidade ou o mundo não estejam em debate (como é o claro
caso de Inferninho), mas o mundo sempre é “o outro”, o “lado de fora”, a que os
personagens vão recusar. Essa radical opção pelo enclausuramento me parece a
principal herança de Guto Parente do diálogo com os Irmãos Pretti no Coletivo
Alumbramento.
Em O Clube dos canibais, a casa permanece
sendo o centro da narrativa. O filme se passa quase todo em interiores, já que
acompanhamos sempre relações do âmbito privado – ou seja, aquilo que deve ser
escondido do convívio público. O filme revela como o poder se transforma em
modos de ser, examinando a rotina dos interiores. A casa é portanto o porto
seguro onde os personagens podem se trancafiar do mundo para exercer sua
micropolítica do poder.
Mas aqui há uma diferença, que se
divide em duas. O clube dos canibais dialoga diretamente com Dizem que os cães
veem coisas, talvez o curta-metragem mais bem sucedido de Guto Parente em
termos de sua circulação em festivais nacionais e internacionais. No curta,
Guto critica a futilidade dos modos de ser da elite cearense a partir de uma
festa vespertina em torno de uma piscina. No entanto, o estilo adotado é a
caricatura na composição dos personagens.
Enquanto Pérola, Ezequiel e
Inferninho são filmes que investem numa interioridade de seus personagens
ensimesmados, agora em O Clube dos canibais a aposta é pela caricatura satírica
e pela parábola política. Os patrões da elite cearense se alimentam da carne
humana de seus empregados – numa leitura política direta da exploração entre
classes.
Para isso – o segundo ponto – é que
O Clube dos canibais opta pelo diálogo direto com o cinema de gênero, em
especial o filme B. As opções de encenação tornam o filme uma tomada crua entre
a ironia requintada e o deboche de mau gosto, numa espécie de comédia de humor
negro. Assim, nas opções de formar uma alegoria política e de tornar a luta de
classes um pastiche de um cinema de gênero, O clube dos canibais dialoga, de
certo modo, com Bacurau. No entanto, no filme de Guto Parente, o tom de “filme
B” é muito mais exacerbado. O tom escrachado, o exagero no caricato, a
estilização do mau gosto tornam O clube dos canibais claramente um
filme-de-nicho. De alguma maneira, O clube dos canibais torna mais agudos os
problemas já apontados em seu curta: se a ideia é fazer um panorama de classe,
a caricatura afasta o filme de uma leitura social mais abrangente – e mais
crível.
Há, no entanto, um fator de
interesse. Os personagens do casal principal – formado por Tavinho Teixeira e
Ana Luiza Rios – são os patrões devoradores, mas, de outro lado, também são
empregados. Num certo ponto, precisam da ajuda de seus empregados para lhes
proteger do inimigo armado, que pode ser seu próprio patrão-amigo. Entendo que esse
casal é a própria classe média, dividida entre a vontade de ser como seus
chefes, oprimindo seus domésticos, e o abismo que nunca serão de fato essa
elite – puxam o saco dos chefes mas a proximidade talvez faça com que “saibam
demais”.
É mais ou menos como o casal de
motoqueiros de Bacurau – a classe média é aquela usada pelas elites com a
esperança de que sejam como eles. Mas na verdade nunca o serão.
No final do ensimesmado O Clube
dos canibais, é como se a própria classe média se autodestruísse. Suas perversões
e contradições levam ao seu próprio aniquilamento. Nesse ciclo vicioso, Guto
Parente busca ser simpático com o elo mais frágil. No entanto, sua parábola
política não consegue desenvolver com consistência o que se apresenta em seu
originalíssimo argumento.
De todo modo, O clube dos
canibais é uma contribuição bastante interessante ao panorama atual do cinema
brasileiro contemporâneo, pela opção cristalina em buscar um filme-de-nicho com
um recorte radical em termos da adequação ao seu gênero. É curioso constatar
que esse filme tão genuinamente B é ao mesmo tempo o mais caro filme – primeiro
longa com recursos públicos – da filmografia de Guto Parente, que já não é
pequena. Ao mesmo tempo que abre outras perspectivas na carreira do realizador,
o filme reverbera uma melancolia indireta, por meio da solidão e da
claustrofobia de seus personagens, que caminham gradualmente em direção à
morte.
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