CORINGA
O HOMEM QUE RI
CORINGA procura inserir uma
camada humana ao super desgastado subgênero dos filmes de super-heróis, repleto
de cenas de ação e efeitos especiais em 3D. No entanto, duas coisas me
incomodam no filme. Primeiro, a excessiva psicologização do personagem, com
recursos de caracterização por vezes bastante frágeis (subtexto: “a culpa é do
Freud”...). O filme é totalmente centrado nos delírios egocêntricos desse homem
comum (na verdade, não tão comum) que busca lidar com as dificuldades e ser
amado, mas só recebe violência e dor em resposta aos seus movimentos. Apesar de
a cidade e suas relações sociais (e também a mídia) aparecerem no filme, creio
que elas surgem mais como pano de fundo para ilustrar a condição interior do
protagonista do que revelam uma natureza mais orgânica. CORINGA resvala num
histriônico egocentrismo do seu personagem principal, que precisa ser
carismático o suficiente para atrair a adesão do público. Desse egocentrismo
surge um enorme desejo de autocontemplação, que resulta no segundo problema, a
estetização. O egocentrismo do CORINGA evade do personagem e atinge o filme,
expresso em uma mise en scene virtuosística, que procura dialogar com o delírio
do personagem. Esse ponto me faz lembrar muito de um texto da Susan Sontag
“Diante da dor dos outros”, em que ela se indaga como representar a dor e o
sofrimento por meio de imagens sem cair no sensacionalismo e na tentação da
estetização de imagens belas sobre a feiura. Com uma estratégia de choque e
vocação para filme polêmico, o personagem do Coringa de Philips é construído de
forma complexa mas no fundo é tão carismático quanto as imagens embaladas
cuidadosamente para que a dor se transforme em espetáculo. No fundo no fundo,
me parece que CORINGA, se não é o protótipo dos filmes de super-herói em 3D,
não muda muito a conformação da roda da fortuna em que ele é inserido. Mesmo
criticando as instituições, como a cidade (a política) e a própria mídia, o
egoísmo do sistema é amplificado no egocentrismo de CORINGA. O filme, em nenhum
momento, procura sair de sua redoma de vidro e se aproximar de fato do mundo,
conversar com as pessoas, caminhar pela cidade. Sua crítica à ordem das coisas
é cuidadosamente bem orquestrada para estimular uma aderência do espectador e
transformar as imagens em espetáculo para serem confortavelmente bem
consumidas, deixando o espectador num lugar muito confortável ao testemunhar o
desvelamento de um interior tão sórdido. Por isso, acredito que CORINGA pouco
altera a ordem do espetáculo ou mesmo não oxigena tanto o tão fechado cinema
hegemônico – e daí considero que a premiação no Festival de Veneza comprova que
a estetização do filme pode ser compreendida mais como uma estratégia de
mercado do que de fato para abrir pontes para outras possibilidades no cinema
contemporâneo.
Por fim, entendo que a principal
referência de JOKER não é TAXI DRIVER nem mesmo O REI DA COMÉDIA mas me parece
ser O HOMEM QUE RI, na incrível performance de Conrad Veidt. Sobre a assombrosa
tão elogiada interpretação de Joaquim Phoenix, atores brasileiros como Matheus
Nachtergaele ou Dellani Lima não ficariam por baixo. A melancolia ou a pulsão
de morte do personagem, sua recusa aos modelos morais, me parecem a
contribuição mais interessante do filme, nos momentos em que consegue escapar
do psicologismo e compartilhar uma experiência do presente, mas sem exposição
narcisística autocentrada. Essa estranha fascinação que muitas vezes os
facínoras nos despertam – e que a arte pode expô-la sem lição de moral. Mas se
o amoralismo é positivo, acredito que também seria preciso não romantizar, para
evitar o risco da identificação ou da sedução pelo personagem.
JOKER, essa obra sobre um
personagem que fracassa (e no final se redime por expressar abertamente seu
ódio), precisa ser um enorme sucesso, pois se constrói na base de um sistema
hegemônico. Essa contradição assola todo o filme – e indica que sua pulsão de
morte precisa ser superada por um elã de catarse e sedução que faça a máquina
permanecer girando. CORINGA parece ameaçar o sistema mas seu tiro certeiro
acaba na verdade sendo incorporado pelo próprio sistema como uma forma de
naturalização da diferença. CORINGA não é o patinho feio do cinema hegemônico:
ele está muito longe de ser um SHOWGIRLS ou um TROPAS ESTELARES ou mesmo de um
FUGA DE LA (por exemplo, a cena do basquete) - esses sim filmes absolutamente
contestadores. JOKER está mais para a famosa exceção que confirma a regra.
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