BACURAU
BACURAU
de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
AS AMBIGUIDADES DE BACURAU
Há uma base em comum entre AQUARIUS e BACURAU. Como já se
expressa em seus títulos, ambos se referem a locais entrincheirados, que tentam
resistir ao esmagamento. Sônia Braga tenta permanecer em seu apartamento,
resistindo contra a especulação imobiliária. Os moradores de Bacurau tentam
sobreviver à invasão estrangeira, que pretende dizimar seus moradores como
animais em um safari. Nos dois casos, o espaço (o edifício Aquarius ou a cidade
Bacurau) são formas de falar de algo relativo à possibilidade de manutenção de
modos de ser, diante das transformações de um capitalismo predatório.
É por isso que ambos os filmes começam com um longo prólogo,
quase deslocado da narrativa principal, cuja função é mostrar que aquele espaço
não deve ser visto apenas como geografia física mas como fruto de uma
trajetória histórica. As lembranças da família em Aquarius e o enterro da
matriarca de Bacurau inserem o papel do tempo e da memória na configuração do
espaço.
Os protagonistas são pessoas de coragem que resistem contra
um processo considerado natural e irreversível. Resistem contra o que
costumamos chamar de “desenvolvimento” ou “progresso”. Ou, se preferirem,
resistem contra a morte.
Mas, enquanto a moradora de Aquarius luta solitária contra
seus invasores, em Bacurau, presenciamos a luta de toda uma comunidade.
Enquanto Aquarius é centrado nos dilemas – e nas contradições de classe – de
sua protagonista (o filme também é um veículo de star system para Sônia Braga),
Bacurau é uma narrativa-coral em torno de diversos personagens que se
complementam, somando esforços em torno de um objetivo comum – a própria ideia
de comunidade.
Dito isso, gostaria de olhar Bacurau a partir de uma quase
explícita filiação com um filme: ASSALTO A 13ª DP, de John Carpenter. As
referências ao cinema de Carpenter são inúmeras nesse filme de Kleber e
Dornelles. A principal delas se refere a um gosto de cinefilia, mas também a um
gesto: o gosto por uma cinefilia específica. Uma constatação, quando fui membro
de sua comissão de seleção, é que, entre os projetos de curtas-metragens de
jovens realizadores enviados para o Funcultura (edital de produção audiovisual
de Pernambuco), pelo menos metade citava John Carpenter como referência, cujas
obras foram vistas não em pesquisas próprias mas nas (tornadas míticas) sessões
de meia-noite do Janela Internacional do Cinema, evento organizado por Kleber
em Recife.
Carpenter (assim como Romero, Ferrara ou Argento) não é um
Bresson, um Bela Tarr nem mesmo um Bressane. Pouco importa. Os “jovens turcos”
da Cahiers du Cinema a partir dos anos 1940 abriram o leque do cinema autoral
destacando realizadores que impunham sua assinatura pessoal mesmo por dentro
dos estreitos limites impostos pela indústria norte-americana. Acredito que
essa dobra começou com Fritz Lang. Mas poderíamos citar autores como Hitchcock,
Fuller, ou mesmo Losey e Preminger, adorados pelos chamados macmahonistas.
De alguma forma, esses diretores utilizavam as convenções da
indústria para subverter suas normas específicas e fazer um cinema pulsante
ainda assim. Eram filmes narrativos de boa comunicação mas ao mesmo tempo
apresentavam reflexão refinada sobre seu ofício.
A primeira coisa que é preciso perceber quando procuro
relacionar o filme de Carpenter ao de Kleber é que Carpenter fez seu filme com
um claro desejo de fazer uma referência cruzada a Rio Bravo, de Howard Hawks, e
A noite dos mortos vivos, de George Romero. Ou seja, o filme de Kleber e
Dornelles já é de uma segunda ou terceira geração de cinéfilos que citam
cinéfilos, movimentando a cadeia para frente.
Carpenter não o cita, mas, se me permitem meter o bedelho e
inserir o olhar de minha própria cinefilia, o filme também dialoga com os
vários filmes de Griffith de 1 ou 2 rolos, que envolviam uma indefesa família
presa no último cômodo da casa, ameaçada por bandidos, esperando o retorno do
herói chefe-de-família para salvá-los – muitos dos quais vi nas inesquecíveis
aulas de linguagem cinematográfica do Prof. João Luiz Vieira, no curso de
cinema da UFF.
O filme de Carpenter é um slapstick de humor negro. Parece
que tudo dá errado naquele subúrbio de LA. Aquele parece ser apenas mais um dia
comum daquele lugarejo que parece abandonado pelos deuses e pelos homens (os
moradores sequer ouvem os tiros e os pedidos de socorro). Mas aquele lugar de
merda é filmado com muita paixão por Carpenter, que sempre expressou toda a sua
relação de amor e ódio por lugares assim (Eles vivem, Fuga de LA, ...).
As semelhanças entre esse filme de Carpenter e Bacurau
começam, claro, pelo plot. Um grupo de policiais acaba entrincheirado na
delegacia, enquanto uma gangue tenta invadir e exterminar todos ali. Tudo leva
a crer que serão dizimados mas conseguem resistir.
No entanto, é preciso ir além do plot, pois o encanto desse
(maravilhoso) filme de Carpenter não está no simplesmente no plot, mas sim na
“improvável” possibilidade do realizador transformar esse filme “improvável”
num motivo cinematográfico. Em outras palavras, está em seu encanto pelo cinema
B. Tudo parece um mero subterfúgio para Carpenter fazer cinema. Aquela
delegacia de LA está caindo aos pedaços, mas, ainda assim, as pessoas tentam
cumprir sua missão e também se divertir, pois é o que lhes resta. É um filme
sobre o prazer possível diante do desmoronamento do mundo.
BACURAU também pode ser visto, de forma análoga, a um filme
que usa as convenções do cinema de gênero para promover um prazer
cinematográfico, em como utiliza as convenções de certo cinema para buscar
ampliar seus limites.
Nesse sentido, é especialmente importante pensarmos nas
ambiguidades de Bacurau a partir de sua recepção. É um filme que utiliza os
padrões de certo cinema de comunicação com o público para subverter os limites
do cinema de ação e promover uma parábola política sobre a condição do país (do
Nordeste, ou do interior, talvez, ou, se preferirem, dos oprimidos, daqueles
que teimam em permanecer). As ambiguidades não param por aí: Bacurau é um filme
que critica a ação dos exploradores estrangeiros mas ao mesmo tempo baseia sua
adesão ao “mercado do cinema de arte” estrangeiro (a partir de Cannes) para
legitimar sua mensagem política. A quem no fundo Bacurau se destina? Aos
eleitores políticos de esquerda, como um filme-mantra sobre os “oprimidos que
resistem”; ao público médio de mercado, que busca um cinema-de-gênero-de-ação;
ou ao público estrangeiro, que quer ver a nova ousadia de um autor
internacional que filma num recanto do Brasil interior?
Bacurau desliza sobre essas camadas de intenções, utilizando
o marketing e o mercado como forma de ampliar seu alcance. Entre o
cinema-de-gênero e o cinema político, entre o filme-mantra da esquerda-festiva
e a capa da Cahiers du Cinema, Bacurau – o filme – vai promovendo um percurso
suave sobre essas possibilidades, flanando como um verdadeiro filme-coral.
Enquanto parábola política, Bacurau é bem explícito – como
se vê, por exemplo, na tendência ao caricato, seja no político engomadinho seja
nos estrangeiros idiotizados. Udo Kier, em seu personagem nazista, é aquele
homem “que amamos odiar”, à moda dos deliciosos personagens de Stroheim.
Estabelecido seu plot, o que só vai acontecer já tendo
passado quase uma hora de filme (o filme não tem pressa), Bacurau se concentra
em fazer cinema. Uma dose de mistério a todo momento, climas cinematográficos
(por exemplo, os meninos no escuro que iluminam o breu com uma lanterna), uma
ideia de prazer em quando e como acontecerão as mortes. Não é à toa que alguns
compararam o filme à chuva de sangue e prazer de alguns dos últimos filmes de
Tarantino, que prolonga a cena de suspense ao máximo possível para encontrar
uma forma cinematográfica para executar a ação final. Recurso de uma nítida
ironia que nos faz remeter, desta vez, a autores como Hithcock, ou melhor, a um
grande criador que, a partir da diluição, encontrou um lugar incrivelmente
original no cinema – Brian de Palma.
A questão em Bacurau é que todos os motivos cinematográficos
se entrecruzam com uma nítida intenção de realizar um cinema político urgente,
que elabore um discurso sobre as pautas identitárias do Brasil de hoje. Quando
Bacurau começa a ser visto como um filme-mantra, ou ainda, como um libelo
representativo do Brasil durante o governo Bolsonaro, ou ainda, quando as
questões começam a escapar do campo propriamente cinematográfico e adentram as
especificidades da práxis política é que vejo que essa ilação – forçada por
certos setores críticos, mas indiretamente estimulada pelos próprios
realizadores – começa a se revelar problemática.
Bacurau é parte da sociedade do espetáculo contemporânea –
aquela de artistas que mesclam a potência da criação com o showbiz. Seu plot
pode ser lido como uma mistura de Deus e o diabo na Terra do Sol com Assalto à
13ª DP. No entanto, a estética política de Glauber Rocha encontrou em sua mise
en scene um conjunto de forças para representar, de forma bastante complexa, as
contradições das forças políticas do Brasil nos caudalosos anos 1960. Bacurau
não ignora a configuração atual do mercado cinematográfico e parece ser voltado
especialmente a um público jovem, que se diverte vendo os miolos dos inimigos
abobalhados sendo explodidos em tela em dolby surround 5.1.
Talvez falte a Bacurau a complexidade de Deus e o diabo para
oferecer uma visão mais aprofundada do que seja o nosso momento histórico. O
pragmatismo de Bacurau – e também o seu grande êxito comercial, algo que nenhum
filme de Glauber jamais conheceu – está em justamente deslizar sobre essas
camadas de possibilidades nunca se esgotando, mas flertando, ao mesmo tempo,
com a reflexão e o espetáculo, com os manifestantes do cinema social político e
com os admiradores do mercado de arte internacional de Cannes, com o “Lula
livre” e a Globo Filmes. Oportunismo ou subversão? Usar o sistema como forma de
criticar por dentro, e solapar suas bases para atingir um público mais amplo,
ou meramente como meio fútil para se inserir nesse mesmo sistema, sem mudar de
fato nada? Não é possível dizer; talvez ambos.
Assim, acredito que Bacurau sintetiza o atual momento do
Brasil e do cinema brasileiro mas talvez não da forma direta como seu discurso
político está sendo lido, mas pelas próprias contradições desse discurso. Por
algo que se esconde mas que ao mesmo tempo está bastante explícito no filme, se
o virmos para além das superfícies, do que se oferece de imediato. Tenho a
impressão de que Bacurau poderá ser melhor visto daqui a vinte anos, se
pudermos vê-lo sem a aura de símbolo. Se o mito fez bem aos seus autores,
talvez tenha prejudicado o próprio filme.
Comentários
Esse aspecto mercadológico por trás do filme salta aos olhos, assim
como a debilidade da obra como comentário político. Também lembrei
de Glauber, imediatamente, pela distância abissal na qualidade da leitura de país e da representação
das forças sociais em jogo.
Grande abraço,
Alvaro Fagundes