AMBIENTE FAMILIAR
AMBIENTE FAMILIAR
de Torquato Joel
Um dos mais importantes realizadores
do cinema paraibano, Torquato Joel estreia no longa-metragem com AMBIENTE
FAMILIAR. No final dos anos 1990, seus curtas, como PASSADOURO e O VERME NA
ALMA, ganharam destaque em diversos festivais de cinema no Brasil. Torquato
também realiza importantíssimo trabalho de interiorização no cinema paraibano
com o Projeto Viação Paraíba, que oferece cursos de formação e realização em
pequenos municípios no interior do estado. Nesses cursos, despontaram
realizadores como Ismael Moura, Kennel Rógis e Paulo Roberto, entre muitos
outros.
No
entanto, pelos percalços do modelo de financiamento do cinema brasileiro, que
por muito tempo permaneceu concentrado no eixo Rio-São Paulo, só agora Torquato
conseguiu realizar seu primeiro longa-metragem, financiado pela primeira edição
do Edital Walfredo Rodrigues (de João Pessoa) em parceria com os Arranjos
Regionais da Ancine. No mesmo ano, este edital da Prefeitura de João Pessoa,
somado ao edital do Governo do Estado da Paraíba, permitiu a realização de
filmes paraibanos memoráveis, de realizadores como Tavinho Teixeira, Arthur
Lins, Bertrand Lira e Ramon Porto Mota, entre outros.
Feita
essa introdução, AMBIENTE FAMILIAR me lembrou muito dos desafios de EU ME
LEMBRO, o primeiro filme do baiano Edgard Navarro. Com essa relação, não me
refiro apenas à posição de cada realizador no cinema de seu respectivo estado –
realizadores de destaque que tiveram de aguardar décadas para realizar seu
primeiro filme – mas principalmente nos desafios estilísticos de ambos os
filmes.
Em seus
primeiros filmes, Navarro e Torquato optaram por uma narrativa fragmentada,
tipicamente memorialista. São lembranças do passado que se avolumam, criando
uma espiral entre a memória e o sonho. O filme de Navarro foi associado com
Amarcord de Fellini e até mesmo com Jodorowsky. O de Torquato talvez passe mais
despercebido – e por isso mesmo faço questão de realçar a importância desse
discreto filme no panorama frondoso do atual cinema paraibano.
A
delicadeza de Torquato é que seu panorama memorialista não evoca diretamente as
memórias de seu próprio passado nem mesmo o de sua geração. AMBIENTE FAMILIAR
começou como um projeto de documentário, em que o diretor apresentava a rotina
de três jovens que dividiam uma mesma casa, e passavam a formar assim uma
família, mesmo que não tivessem “o mesmo sangue”. Com toda a demora no processo
de liberação de recursos, a vida dos três personagens sofreu diversas
transformações, e Torquato então optou por entrecruzar o projeto original com
recursos ficcionais.
Os
protagonistas de AMBIENTE FAMILIAR (Alex Oliveira, Fagner Costa e Diógenes
Duque) não são portanto atores profissionais mas representam os papeis de si
mesmos. À medida em que convivem, são evocados fragmentos de seu passado,
principalmente concentrado na infância e na relação com suas mães. Esses
fragmentos são encenados ficcionalmente. No entanto, não existe propriamente uma
vocação biográfica. Pouco se sabe sobre a construção desses personagens, como
numa típica narrativa de construção de self em direção à juventude, como é o
protótipo de Werther, de Goethe. Recusando toda a biografia totalizante,
Torquato apenas oferece lampejos de momentos de intimidade, entre os filhos e
seus pais. Ainda que o filme possua um contorno nostálgico, especialmente pela
valorização da luz, a família nunca é vista como porto seguro, mas sim como
lugar de disputa, em que o afeto convive com a solidão, com as perdas e
rupturas. Um dos mais belos momentos que reflete a inclinação da mise en scene
de Torquato é quando a personagem de Marcelia Cartaxo reza, não numa igreja mas
num cemitério, junto ao seu filho, para quebrar o feitiço feito contra ela, e
Torquato corta para um pequeno cubo de gelo em formato de seio que rapidamente
seca e desaparece diante do sol nordestino – algo que se remete, de forma
indireta ao papel do ex-voto nos rituais religiosos. (A propósito, nesse
caleidoscópio de histórias, é sempre uma maravilha ver em tela um conjunto de
grandes atrizes e atores do cinema paraibano, grande celeiro de intérpretes,
como Zezita Matos, Marcelia Cartaxo, Soia Lira, Veronica Cavalcanti, Fernando
Teixeira, Suzy Lopes, Kassandra Brandão e tantos outros e outras).
Ao falar
das memórias de família desses três amigos de uma geração mais nova que a do
diretor, Torquato, ao mesmo tempo, indiretamente se reflete nessa narrativa,
como se num espelho. Entendo que os três jovens, curiosamente, se complementam,
numa espécie de teia, como uma espécie de alter ego do próprio realizador, inserindo
uma camada inesperadamente pessoal ao filme. O tema da família, a relação
materna, é ainda mais forte quando percebemos que são três jovens homossexuais,
que provavelmente não terão filhos. O modo singular como Torquato alia as
micronarrativas no interior do filme, sem nenhuma progressão teleológica, torna
AMBIENTE FAMILIAR um corpo estranho não apenas no cinema brasileiro. Combinando
não apenas documentário e ficção, ou ainda, a memória e o sonho, ou mesmo, o
passado e o presente, Torquato Joel busca falar dos desafios de uma geração
jovem em encontrar o seu lugar no mundo, com recursos que o aproximam mais da
poesia do que da prosa. Talvez falte um pouco ao filme um desejo de futuro, um
desejo de romper de vez a nostalgia e as memórias do passado e mergulhar na
vacuidade e na latência em deriva do presente. Sabemos que o bom jovem cinema
contemporâneo é aquele em que os personagens se agarram ao presente, porque é
tudo o que lhes resta. Excessivamente memorialista, AMBIENTE FAMILIAR talvez
esteja tão preocupado em propor um acerto de contas com o passado que se
esquece de olhar para o mundo de hoje, que, mesmo diante de todas as
dificuldades, precisa continuar pulsando.
Comentários