A NOITE AMARELA




O CINEMA – OU A VIDA – É COMO UM PORTAL


A NOITE AMARELA, primeiro longa solo de Ramon Porto Mota, é mais um passo no amadurecimento da produtora Vermelho Profundo. Sediada em Campina Grande, interior da Paraíba, o grupo começou a realizar curtas-metragens de destaque em torno de uma versão autoral do cinema de gênero, com diretores como Ian Abé, Jhesus Tribuzi, além do próprio Ramon e do produtor Fabiano Raposo. O NÓ DO DIABO, que contou com a colaboração do mineiro Gabriel Martins, foi o primeiro longa-metragem da Vermelho Profundo. Na verdade, uma série de televisão em episódios, que acabou também assumindo a configuração de longa-metragem.
A NOITE AMARELA é mais um dos filmes que comprova a incrível fase do cinema paraibano. No entanto, essa produção do interior do estado escapa completamente às definições do “cinema do agreste” ou mesmo da estética dos cursos de interiorização ministrados por Torquato Joel. O cinema da Vermelho Profundo traduz uma experiência urbana que reelabora a leitura do cinema de gênero incorporando elementos do cinema nordestino, mas sem o ranço regionalista ou periférico que caracteriza esse cinema.

Por seu próprio título, A NOITE AMARELA se apresenta como um filme a partir da experiência da luz. “Noite” e “amarela” apresentam, portanto, sua inclinação por um cinema em que o tom ou a experiência sensível acabam sendo preponderantes em relação a uma dramaturgia narrativa – com a expressiva contribuição da fotógrafa Flora Dias. Assim como alguns outros filmes brasileiros deste momento – podemos citar entre eles BACURAU ou O CLUBE DOS CANIBAIS –, A NOITE AMARELA apresenta seu desejo de falar do desafio das coisas do mundo de hoje a partir de uma inclinação pelo cinema de gênero. Mas se BACURAU opta pelo faroeste condimentado com Carpenter e O CLUBE DOS CANIBAIS pelo gore sanguinolento ou pelo giallo sem detetive, em A NOITE AMARELA o filme desliza por camadas que se aproximam de uma espécie de slasher existencial. Os entrecruzamentos podem ser fartamente feitos, já que o próprio slasher é um derivado do giallo italiano, e uma vertente do próprio cinema de Carpenter flertou com um falso slasher, como The fog.

Um grupo de jovens se retira numa pequena casa no interior, como rito de passagem do último ano do colégio. O desconhecido será uma forma de enfrentar os desafios dessa juventude que precisa ser dona do seu próprio destino ainda que não saiba exatamente bem por onde ir. Seria tentador passear pela busca de referências ao cinema de gênero para melhor contextualizar o filme. Até mesmo rastros de um certo cinema brasileiro como alguns filmes (um tanto esquecidos) de Jean Garret e Walter Hugo Khouri, que criam fissuras no real por meio de um jogo de espelhos narrativo que reflete a desorientação dos personagens, poderiam ser trilhados nesse caminho. Mas o que mais me fascina em A NOITE AMARELA é o seu gosto por um cinema jovem – não apenas pela idade dos personagens mas especialmente por rastrear um modo de encenar que coloque a dúvida, o espanto, o desconhecido, o inesperado em primeiro plano. São tão poucos os filmes brasileiros que de fato buscam compreender essa fase tão delicada e tão misteriosa que é a juventude. A NOITE AMARELA não idealiza nem romantiza os ritos de passagem. Apenas lança um olhar difuso, entre o maravilhamento da descoberta e o arrepio diante do desconhecido, entre o desejo de estar em grupo e a inevitabilidade da solidão. Talvez  A NOITE AMARELA seja o mais genuinamente jovem dos filmes brasileiros dos últimos anos. Pois nele, tudo é potência, e muito pouca coisa se atualiza de fato – e de forma cada vez mais gradativa até seu desconcertante fim (o cinema ou a vida como um portal).

Por fim, é notável como esse filme noturno, passado muito dentro de uma casa, consegue retratar tão bem o que é Campina Grande – essa relação de amor e ódio, de pertencimento a um local como modo de ser, e ao mesmo tempo, esse nó da garganta típico da juventude que é não se sentir confortável em sua própria casa. Campina Grande, essa cidade situada no interior da Paraíba mas que ao mesmo tempo enfrenta diversos desafios das grandes metrópoles – muito longe de ser uma cidade rural – está presente no filme de maneiras sutis e diversas. Uma juventude que busca desesperadamente um lugar para chamar de seu, e desliza, quase fracassa. E subitamente percebemos que um posto de gasolina acaba sendo um local de encontro – ou ainda, uma paisagem que revela as contradições da cidade. A NOITE AMARELA também é um filme sobre uma geração que fracassa em ocupar os espaços da cidade, mesmo que seja com suas próprias cinzas. Campina está presente no filme especialmente por suas ausências.

Como é possível ser jovem numa cidade como Campina Grande? O que ainda pulsa, de esperança, de receio diante do futuro que se abre, diante de nossa solidão, diante dos desafios da cidade? A NOITE AMARELA busca responder essas questões mas não de forma programática, mas oferendo sugestões, por meio de um cinema de climas cinematográficos, onde o desconhecido evoca uma certa tristeza, um sinal de que tudo pode desaparecer a qualquer instante, e que o afeto é essa chama cálida que pode desaparecer subitamente, mas que é preciso seguir ainda assim. Se O NÓ DO DIABO é um filme histórico sobre o racismo (e Ramon é formado em História), A NOITE AMARELA abandona qualquer referência direta política ou sociológica para refletir, de forma inesperadamente complexa, sobre os desafios da juventude num mundo cada vez mais instável.


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