Quelé do Pajeú
Quelé do Pajeú
de Anselmo Duarte
Ontem mais um capítulo da nossa
história do cinema brasileiro foi redescoberto com a sorrateira exibição no
Canal Brasil de uma "fita" considerada irremediavelmente perdida.
Assim como um grupo de cinéfilos assistiu boquiaberto há alguns anos a nova
exibição de JARDIM DAS ESPUMAS, de Luiz Rosemberg Filho, no CineOP, mais de 30
anos após sua última exibição, agora em pleno período de Natal, seria a vez de
"Quelé do Pajeú", dessa vez na TV.
Rever Quelé do Pajeú, quase meio
século após sua produção, nos permite preencher mais uma peça desse enorme
quebra-cabeças que é o cinema brasileiro, e nos permite reavaliar a produção de
cinema dos anos sessenta, esse turbilhão, especialmente na relação entre o
"cinema novo" e um cinema de matiz mais comercial. Nos conflitos e
nas possibilidades da proposta de um "cinema moderno" em meados dos
anos sessenta.
Quelé me parece ser uma
peça-chave nesse debate, pelo papel de seu realizador, Anselmo Duarte.
Desde O Pagador de Promessas,
Anselmo esteve "entre a cruz e a espada" no cinema brasileiro, entre
"o céu e o inferno", entre "deus e o diabo".
Todos esses termos, uso, claro,
como analogia não apenas à posição de Anselmo na trajetória do cinema
brasileiro, mas aos temas colocados por alguns de seus próprios filmes.
São vários os elementos que
aproximam Quelé de O Pagador, entre eles, o de tematizar a odisseia de um homem
simples do interior em busca de pagar uma promessa, e que enfrenta o
conservadorismo das instituições locais. Em busca de paz com sua consciência,
esse homem simples tenta ele próprio fazer justiça mediante a aplicação de uma
moral própria, uma adaptação individual das leis de Deus e das leis do Homem.
O martírio dos personagens desses
dois filmes é encontrar esse justo equilíbrio entre o mundo da matéria e do
espírito, entre as coisas e o sonho, entre o real e o ideal, entre a pureza e o
pecado, entre Deus e os Homens, ou entre Deus e o Diabo.
As diferenças entre esses dois
filmes (que são muitas) podem ser pensadas em várias medidas, uma delas, é o
uso do espaço. Em O Pagador, tudo se resolve no espaço restrito de uma
escadaria (a Igreja, do alto, o reino dos céus, e o beato sentado embaixo, na
penitência do mundo dos homens). Em Quelé, o espaço é o amplo sertão
nordestino, a peregrinação é um deslocamento físico entre inclusive diversos
estados, entre Alagoas e Pernambuco. Um dos conflitos de Quelé é entre o verde
e a seca: a vegetação é um dos mais formidáveis elementos de mise en scene
desse filme.
Quelé é um filme irregular,
misterioso e traiçoeiro, um filme moral como alguns westerns de Anthony Mann,
de Budd Boetticher, de Sergio Corbucci. Não chega a ser um John Ford, muito
menos um Monte Hellman ou um Sergio Leone, mas não faz mal. Não deve ser pecado
pensar em Alselmo não como o gênero que duelará com Glauber, mas como um
artesão que contribui para outros olhares no cinema brasileiro.
Talvez Quelé seja uma espécie de
Lawrence da Arábia do cinema brasileiro. Mas sem tanto sucesso em sua
realização.
Quelé também decerto não é Meu
nome é Tonho, de Ozualdo Candeias. Mas fica em nossa memória a impressionante
cena em que Rosana Ghessa, após ser recusada sexualmente por Tarcisio Meira,
pega o cavalo e sai em disparada. Cavalga, literalmente. É impressionante olhar
cinematográfico sobre os dilemas centrais da dramaturgia do filme, entre a
pureza e o pecado (o sexo como instrumento de prazer e de pecado, as relações
entre homem e mulher), refletido por meio de um cinema físico.
Ainda que menos coeso e mais
irregular, o final de Quelé propõe que o caminho do protagonista seja não
apenas um caminho individual mas um caminho de insurreição coletiva.
Me parece que essa posição do
personagem (sua solidão) reflete um pouco a própria posição do diretor no
cinema brasileiro. O Pagador de Promessas, filme mítico dentro da trajetória do
cinema brasileiro, fez com que Anselmo ficasse "entre a cruz e a
espada". Seria um cinema clássico de autor? Seria um cinema social de
público? O Pagador inseria uma possibilidade de entremeio entre o cinema
moderno e o cinema clássico que foi duramente atacado pelo cinema novo, em
especial por Glauber no Revisão Crítica.
Quelé me parece avançar nesse
debate, sendo uma continuidade do projeto de Anselmo Duarte. Mas entre O Pagador
(1962) e Quelé do Pajeú (1969), aconteceu muita coisa no Brasil, é claro, e
muita coisa também no cinema. Em especial Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964). Isso sem falar em Veredas da Salvação, que não vou conseguir abordar
aqui.
O Pagador e Quelé são
"filmes de levante", o homem do povo se insurge solitariamente contra
as instituições. Mas no caso de Anselmo esse levante não acontece contra a
instituição-sistema do próprio cinema. Essa é a diferença para o cinema novo. Para
Glauber, a estética é um dos instrumentos da revolução.
É quase como se não desse para
falar de Quelé sem pensar em Deus e o Diabo.
Quelé usa a base do cinema
clássico, com uma enorme produção em termos financeiros, finalizada em 70mm.
Usa a base do cinema de gênero (o western, o "filme de cangaço"), e
claramente dialoga com o cinema italiano (o western italiano), semelhança
aumentada pela coincidência do destino de a cópia recuperada ser legendada em
italiano.
São muitos os pontos em comum
e especialmente as diferenças entre Quelé do Pajeú e
Deus e o Diabo na Terra do Sol. Assim como com O cangaceiro, de Lima Duarte. O
que espero ser um dos temas para reavaliar o cinema brasileiro desse período, e
a trajetória de Anselmo Duarte. São pontos que precisam ser refletidos em
outras revisões, com mais calma.
Isso só é possível porque esse
filme volta a circular. É um filme importante sob muitos aspectos. Redescobrir
um filme desses é como ressuscitar algo que estava encavado. A
"historiografia clássica" do cinema brasileiro está sendo
redescoberta e reavaliada por toda uma geração nos últimos anos, e Quelé do
Pajeú certamente é uma dessas peças.
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https://youtu.be/OrdnwHViwa8