NOTAS DE TIRADENTES 2015 (VII) - CURTAS MOSTRA PANORAMA




CURTAS MOSTRA PANORAMA

Na Mostra Panorama, o grande destaque foram várias produções do Rio de Janeiro, muitas delas com alunos ou ex-alunos do curso de cinema da UFF. É notável ver um contexto criativo de curtas ousados surgindo de uma geração jovem ligada a essa tão tradicional escola de cinema. Esses curtas gritam de ousadia, quase todos em torno de um cinema jovem, que expresse os anseios, as dúvidas e os dilemas da juventude refletidos através de uma estética contemporânea, viva, pulsante, que se coloca em risco. Além do BICUDA, selecionado para a Mostra Foco, outros três curtas, mais radicais na forma que o BICUDA, podem ser citados: JAVAPORCO, de Leandro das Nevez e Will Domingos, ENSAIO SOBRE MINHA MÃE, desconcertante curta de Jocimar Dias Jr., e especialmente o incrível CORAÇÕES SANGRANTES, de Jorge Polo - que considero a mais pulsante obra - entre curtas e longas - exibida em toda a Mostra, que já analisei em texto separado. Infelizmente não terei fôlego para falar sobre os dois primeiros curtas citados (talvez volte a eles em outro instante, se conseguir revê-los). Destaco também  A HORA AZUL, de Giovani Barros, que, apesar de "mais formatado" que os curtas anteriores (que são mais "rebeldes" ou, colocando de forma melhor, que se arriscam mais), tem momentos bonitos na forma delicada como o realizador olha para a vida de sua protagonista. E também VENTANIA, de Matheus Peçanha, Renata Spitz e Thiago Yamachita, exibido na Mostra Formação.

Outro destaque são os curtas silenciosos de Krefer, esse curitibano que volta ao cenário dos festivais depois de um tempo de exílio voluntário. Suas obras são as que mais dialogaram diretamente com as artes visuais nessa edição do festival. Com DEUS Krefer já havia deixado grande impressão numa edição anterior da Mostra, junto com VÓ MARIA, de Tomás von der Osten. Agora, volta ainda mais amadurecido. ESTUDO DE PERSISTÊNCIA é todo feito a partir da montagem de fotos caseiras mostrando casais fotografando-se durante o ato sexual. Nesse estudo sobre o autorretrato, e sobre as formas de exposição da intimidade publicamente - potencializado na exibição desse curta em Tiradentes, numa tenda com cerca de 500 pessoas.... - as fotos ganham contorno sofisticado por um trabalho de luz que superexpõe os flashes, recurso que, para além de seu belo efeito estético, coloca um ponto a mais sobre a questão de "dar luz" a esses momentos de intimidade, ou no que eles propriamente revelam. ACTION PAINTING 1 e 2 nasce de uma brincadeira com a pintura de Jackson Pollock, mas que combina com a questão do sexo, que parece ser a vertente desse conjunto de trabalhos de Krefer. Vemos um casal transando, mas vemos apenas as costas do homem por cima da mulher. As costas do homem tornam-se uma tela. As mãos da mulher arranham as costas, marcando-a, ferindo a pele, chegando a sangrar. A relação entre pintura e vida, esse gosto pelo movimento da vida, que é a base da pintura de Pollock, ganha um contexto mais explícito: a tela é o próprio corpo, pinta-se com as próprias marcas das mãos sobre o corpo. Dessa mistura de dor e prazer, desse êxtase, é que nasce a obra. No #2, o efeito é invertido: vemos as costas da mulher, e uma relação sadomasoquista se anuncia com gotas quentes de velas que caem sobre seu corpo, compondo um quadro à la Pollock. O #01 me parece ainda mais potente que o #02, mas os dois se complementam numa espécie de díptico. Muito mais haveria a ser dito, como o efeito curioso quando essas obras verticais (o comprimento é bem menor que a altura) são projetadas numa enorme tela horizontal, numa tela de cinema e numa tenda de enormes proporções como Tiradentes.

Outros destaques estão em dois curtas já exibidos no Festival de Brasília. O extraordinário SEM CORAÇÃO, de Nara Normande e Tião. Ainda não consigo encontrar palavras para exprimir o quanto esse curta tocou em mim, dado o seu potencial sensorial e sua complexidade na abordagem do universo adolescente, essa necessidade e dificuldade do contato, esse dilema homem-mulher e entre "menino-da-cidade" e "menino-do-interior". O cinema contemporâneo é, acima de tudo, um cinema do encontro, um cinema dos modos de ser. SEM CORAÇÃO é extraordinário. O segundo é o inventivo LOJA DE RÉPTEIS, de Pedro Severien, que consegue estabelecer um clima ambíguo, filme de atmosfera, entre a decadência, o doentio e o perverso. Um curta sofisticado, um diálogo com o expressionismo, um desejo por um cinema muito além de sua narrativa.

Outro curta bem interessante é BOA MORTE, de Débora de Oliveira. O curta, a princípio, parece ser mais um curta memorialista, sobre a infância da própria realizadora em sua cidade no interior de Minas. Se essa estrutura não é novidade, encanta a forma como a realizadora conseguiu um tom muito peculiar, ao inserir toda um clima de intimidade no curta: o trabalho pictórico com as fotos, o bem escolhido timbre da voz e a forma como a narração é lida, os tempos entre as fotos. Melancólico e saudosista, BOA MORTE insere uma certa camada ficcional ao tom documental mas impressiona mais pela habilidade em encontrar um tom singular para abordar essa ambiguidade entre a saudade da infância (pertencimento) e o desejo de distanciamento e uma certa crítica ao provincianismo e anacronismo desse mesmo lugar - expressos de forma extremamente precisa em seu próprio título.

A CLAVE DOS PREGÕES, curta de Pablo Nóbrega, é um documentário sobre os pregões - as toadas características emitidas pelos vendedores ambulantes para anunciar suas mercadorias. Esse curta tem dois méritos bastante claros. Primeiro, ele não é um documentário informativo, que busca propor um mapeamento histórico, ou ainda, passar informações sobre a vida e as origens dos pregões, mas "apenas" se limita a mostrá-los em ação. Mas seu maior mérito é que, através deles, Pablo busca nos apontar para uma questão maior: seu trabalho de sobrevivência como uma forma de resistência. Ou ainda, em uma análise das transformações do modo de vida urbano. Isso me lembra do livro "Os sons que vêm da rua", livro de José Ramos Tinhorão, em que ele analisa algumas canções influenciadas pelos pregões dos vendedores de sorvetes. Certamente, as transformações urbanas da cidade, dominadas por obras, sons metálicos (carros, buzinas) e pela verticalização dos prédios praticamente afastaram os vendedores ambulantes das ruas. Os pregões são uma forma de arte - uma forma criativa de formar uma "marca" distintiva, num processo de divulgação de produtos que em muito se diferencia das práticas do consumo de massa. Ao mostrá-los caminhando pela cidade, mesmo sem vender nenhum produto, Pablo nos dá a ver uma invisibilidade: reinsere esses personagens no espaço urbano, ainda que hostil. Ou seja, A CLAVE DOS PREGÕES é, mais do que um documentário sobre o papel dos pregões, um curta sobre as transformações urbanas da cidades brasileiras e suas implicações nos modos de ser, nas formas de trabalho artesanais, e uma reflexão sobre as possibilidades de resistência. Por fim, esse projeto só poderia fazer sentido com um efetivo desenho de som - mais um brilhante trabalho de Danilo Carvalho. A CLAVE DOS PREGÕES é contemporâneo porque busca, acima de tudo, mostrar e, para isso, utiliza com sabedoria e simplicidade alguns recursos de mise-en-scene. O som dos pregões é quase abafado pelo barulho típico das cidades. Num dos mais belos planos do filme, numa rua deserta, ouvimos um pregão, e, lentamente, surge o vendedor, empurrando manualmente seu carrinho. Ninguém compra seu produto. Quando está quase a sair do quadro, estático, surge, ao fundo do plano, um trem, que rasga a paisagem.

AGRESTE, de Dellani Lima, comprova um caminho progressivo de amadurecimento desse inquieto realizador, que vem realizando praticamente um longa por ano. Realizado de forma urgente por conta de uma estada de Dellani em Fortaleza para a realização da Mostra Cinema de Garagem, AGRESTE, assim como alguns de seus últimos trabalhos, vem apostando numa depuração, na busca de uma simplicidade. É a fase Dellani-zen, que contrasta com seus primeiros filmes fortemente marcados pela influência da videoarte mineira. Mas nos últimos tempos, mais do que texturas visuais, e de seu inconformismo radical, Dellani parece mais interessado em desenvolver uma dramaturgia que busque, com simplicidade, abraçar as carências afetivas de seus personagens, quase sempre num híbrido entre documentário e ficção. Neste que é um de seus mais singelos trabalhos, ganha força a forma como a cidade de Fortaleza inesperadamente surge na tela, diante de uma ruína na Praia do Futuro (onde também poderia ser na Barra do Ceará). Talvez sua força venha exatamente da relação pessoal de Dellani com a própria cidade em que passou boa parte de sua vida, até que optou por se mudar para BH. AGRESTE fala da necessidade de partir, de deixar algo para trás, ainda que esse algo no fundo nunca saia da gente. E também fala sobre a morte, ou ainda, sobre o que fica após a morte das coisas (as ruínas). Quando Vítor Colares e Caio Dias quebram com um grande porrete parte das ruínas, a força da cena estão não somente porque esses seres vivem essas situações em seus corpos, mas essencialmente porque eles a vivem em suas próprias vidas. Todo filme de Dellani é uma autobiografia, e este certamente não é diferente. Mas aqui a forma como as carências pessoais são entrecruzadas com um sentimento grave para a cidade ganha um contorno especial. Por fim, é preciso citar a emblemática presença de Jean-Claude Bernardet, como esse pai que surge na tela com toda a sua força e toda a sua fragilidade. Em seu corpo, Bernardet sintetiza os desejos de AGRESTE.


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