NOTAS DE TIRADENTES 2015 (VI) - CURTAS MOSTRA FOCO
CURTAS - MOSTRA FOCO
Entre seus 12 curtas, a Mostra Foco contou com dois curtas
já exibidos e premiados em outros festivais de cinema no país, de realizadores
já conhecidos no formato (podemos dizer que se tratam de "veteranos"
no curta-metragem...).
A ERA DE OURO é uma parceria entre o paulista Miguel Antunes
Ramos (um dos diretores do curta E, premiado em 2014 na mesma Foco) e o
cearense Leonardo Mouramateus (diretor de vários curtas premiados, como Lição
de Esqui e O Completo Estranho). Isso já é interessante, pois o próprio curta
trata de um (re)encontro entre São Paulo e Ceará, ou ainda, o curta analisa as
distâncias entre as duas cidades, mas sem uma perspectiva política tradicional,
mas em como essa distância tão conhecida entre Nordeste e Sudeste pode ser
examinada através de modos de ser. No curta, um cearense viaja para São Paulo e
aproveita para reencontrar uma antiga amiga, também cearense, mas que mora na
cidade há um bom tempo. Ambos trabalhavam juntos numa peça mas agora ela
trabalha em uma grande empresa. O choque então não é apenas geográfico, mas uma
distância temporal, uma distância das escolhas pessoais, dos rumos da vida, em
"o que fazer". O curta irá fazer uma crítica indireta ao sufocante
modo de vida paulistano, à desumanização das relações de trabalho. Mas, à
medida que o curta avança, percebemos uma outra dobra, mais complexa: acima de
tudo A ERA DE OURO é sobre a
representação, sobre a (terrível) necessidade de que muitas vezes precisamos
representar os papeis de nós mesmos para sobreviver à selva do mundo. Ou seja,
para falar de "modos de ser" é preciso necessariamente falar em
"modos de representar". As sombras entre "cinema e vida",
tão caras ao cinema contemporâneo, ganham nova roupagem, refletindo uma
estratégia política pelo lado avesso, não em aproximar o cinema da vida, mas a
vida da representação, ou seja, por como a vida se tornou quase como um jogo de
representações, mas sem a pureza de um espetáculo teatral. Nesse jogo de
espelhos, resta a fragilidade dos personagens, até que uma ação inesperada
quebra esse espelho. E talvez não tenha nada atrás dele! Talvez apenas percebamos
que representamos mal um papel pequeno numa peça barata - oh a vida! O que me
lembra de uma frase de Jean-Pierre Jeunet: "após fazer publicidade,
percebi que, se sofremos quando fazemos um filme de que gostamos e as pessoas
não gostam, sofremos muito mais quando fazemos um filme de que não gostamos e
as pessoas gostam. Percebi então que o único caminho do cinema é a
sinceridade". A ERA DE OUTRO é exatamente sobre isso, sobre "fazer
cinema" ou "fazer publicidade", é sobre escolhas.
ESTÁTUA, de Gabriela Amaral Almeida, prossegue a pesquisa
audiovisual realizada em seus curtas anteriores (UMA PRIMAVERA, A MÃO QUE
AFAGA, ...) e que também revela sua proximidade com o grupo do "Filmes do Caixote". Seus
curtas são sobre pessoas comuns que inesperadamente se veem em situações
extraordinárias. O tempo comum do cotidiano vai assumindo um gradual
estranhamento, dialogando claramente com os limites do cinema de gênero. Assim,
se o cinema contemporâneo trata o comum, a rotina, a família e o cotidiano nas
bordas do filme documental, indiretamente influenciado pelo neorrealismo
italiano, aqui o enfoque é quase que radicalmente diverso. Em comum, pensamos
em diversos dos trabalhos do Filmes do Caixote, em especial os curtas e longas
de Juliana Rojas, Marco Dutra e Caetano Gotardo, vários dos quais a própria
Gabriela participou como colaboradora. ESTÁTUA prossegue essa linhagem,
aparentemente enunciando-se como uma simples história de uma babá grávida que
toma conta de uma menina de cerca de 10 anos, quando sua mãe viaja. Esse filme
de mulheres sobre mulheres vai gradualmente deixando o campo do comum e
embarcando no campo do fantástico (termo mais apropriado do que
"terror" ou "suspense"). A habilidade com que a diretora
cria climas e situações, com um curta todo passado dentro de uma casa, é
notável. As dobras entre a comédia, o drama e o "suspense" têm
variações fluidas, leves e orgânicas, garantindo o equilíbrio do resultado
final, entre roteiro, atuação e direção (mise en scene).
Nos demais curtas, o resultado é irregular, alguns
funcionando mais, outros menos. Temos o divertido e metalinguístico OUTUBRO ACABOU, de Karen Akerman e Miguel
Seabra Lopes, que mostra as aventuras de um menino que quer se tornar um
cineasta. Detalhe que o menino é o próprio filho do casal de realizadores e os
pais (que só vemos pelas pernas, quase como um recurso de desenho animado) são
os próprios diretores (obs.: eu os reconheci pelas vozes, e não pelos
pés!....rs). Um curta talvez um tanto romântico e idealizado demais,
corroborando com uma visão muito romântica do papel do artista. Mas, ao colocá-lo
como uma criança, Akerman e Lopes fazem uma doce autocrítica, ao mesmo tempo
ironizando os delírios do cineasta-autor mas ao mesmo tempo louvando a pureza e
a inocência dos seus princípios. Talvez todo genuíno cineasta seja uma criança.
É essa aposta consciente na ingenuidade que confere ao curta a sua beleza.
Continuando com crianças..... divertido, doce e ingênuo mas
bem cinematográfico também é VIRGINDADE, de Chico Lacerda, que relata as
primeiras experiências sexuais de um pré-adolescente, mas na verdade narrados
pelo próprio diretor, já adulto. É um filme sobre crianças feito por e para ser
visto por adultos. É sobre essa distância que o filme se baseia. Para isso, é
curiosa a aposta do diretor na narração (não vemos as cenas, só ouvimos sua
descrição e imaginamos como teriam sido) enquanto a imagem mostra planos gerais
dos lugares em que a ação se passou mas nos dias de hoje (da narração), muitos
deles desfigurados (por exemplo, um cinema que virou uma loja, etc.). Um curta
inventivo, ao cruzar esse gosto pela narração com o papel do tempo e das
transformações da própria cidade. Cruza então documentário, ficção e
experimental de forma criativa, abordando ainda o tema da iniciação sexual de
uma criança que se descobre gay, de forma frontal e objetiva mas sem querer
chocar, com uma certa leveza e ingenuidade. Mais um exemplo de uma série de
curtas criativos feitos pelo coletivo Surto e Deslumbramento, de Recife.
Continuando com as descobertas sexuais....NO DIA EM QUE
LEMBREI DA VIAGEM A BICUDA, de Vitor Medeiros, fala de um (des)encontro entre
um casal de adolescentes que passa um final de semana sozinhos numa casa de
campo. O curta já começa com um clima de estranhamento, baseado num grande
plano geral e numa narração de voz branca, desdramatizada. Até que surgem os
dois principais planos do filme (bastante longos), quando o casal transa. Toda
a dificuldade do contato está ali numa dramaturgia do corpo, sem palavras, sem
diálogos. A necessidade do outro, o estranhamento, a dificuldade, tornam a cena
quase uma luta. A forma como os corpos procuram e evitam um ao outro, a
dificuldade de os corpos "se encaixarem" expressa de forma incrível
os desafios da dramaturgia desse curta. Seria ainda melhor se o diretor não
precisasse citar tão explicitamente o cinema de Hong Sang-Soo, especialmente
com o uso das zooms, recurso tão característico desse diretor sul-coreano.
Por fim, destaco o que considerei
ser a maior surpresa positiva dos curtas da Mostra Foco. É brilhante o clima de
cinema que a diretora Nathália Tereza consegue imprimir em A OUTRA MARGEM,
utilizando um certo minimalismo, ou ainda, como recursos considerados básicos
da linguagem do cinema ganham máximo efeito expressivo, com o uso do tempo, do
olhar, do percurso...
Há alguns poucos diretores que
são mestres na abordagem do universo feminino, como Bergman, Antonioni ou o
nosso Carlão, mas é raro ver o contrário: cineastas mulheres abordando o
universo masculino. Geralmente as mulheres buscam protagonistas femininas, em
busca de um "ponto de vista feminino". Em A OUTRA MARGEM, a diretora
Nathália Tereza aborda o universo masculino, um homem à noite à procura de
alguém. O curta inteiro é um passeio de carro pelas ruas da cidade à procura de
uma diversão, talvez algo para entreter o tédio, uma companhia, um amor, não
sabemos ao certo muito bem. Não estamos então muito longe da atmosfera do
cinema de um Kiarostami, por exemplo. O carro, a estrada e esse homem. A OUTRA
MARGEM, no entanto, não é um filme psicológico: quase à maneira de um TWO-LANE
BLACKTOP, temos o percurso e a estrada em planos bastante longos. E a noite.
Há, ainda, um tom de melancolia que preenche toda a cena, uma solidão. Fico
imaginando - provavelmente puro delírio meu - que essa menina que ele encontra
seja mero fruto de sua imaginação. Com uma estrutura circular, estamos diante
de um homem que busca, mas ele permanece opaco: temos apenas a estrada, o
percurso, o carro. Tudo o mais se passa na cabeça do espectador, que sente sua
solidão, que, ao final desse percurso que nunca acaba, parece ser a sua
própria. Não há psicologia para definir o curso das ações: as ações, elas falam
por si mesmas (no cinema, o que temos são as ações, os pequenos gestos, não
conseguimos ter acesso ao interior, esse é o bom cinema moderno!) O uso da
música - som diegético mas cuja função poderia bem ser extradiegética -, esse
recurso tão perigoso, é também um capítulo à parte.
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