JEAN GARRET, AUTOR MODERNO
EXCITAÇÃO (1976)
A FORÇA DOS SENTIDOS (1978)
MULHER, MULHER (1979)
A FORÇA DOS SENTIDOS apresenta, especialmente se visto junto
com EXCITAÇÃO e MULHER, MULHER, muitos dos mais caros temas da filmografia
desse cineasta singular que é Jean Garret. Garret, o artesão da Boca. Três
filmes que devem ser vistos diante do seu contexto de produção: Garret estava
totalmente imerso num modelo de produção muito particular, mas, a partir disso,
encontrou a síntese de sua obra como autor cinematográfico, um cinema refinado
estilisticamente com um direto diálogo com o público. Cada um desses três
filmes superou a marca de 1 milhão de espectadores - e olha que na época nem
existia Globo Filmes ou lançamento pelas majors. Três filmes que podem ser, a princípio,
apresentados como "pornochanchadas", dado o apelo erótico presente no
título e pelos cartazes que tentam identificar o filme à figura de suas
protagonistas femininas. Mas, sendo mais preciso, esses filmes se afastam do
modelo mais típico da pornochanchada, a comédia de costumes carioca, com
personagens-tipo canastrões. Ainda estamos no campo do cinema de gênero e de
produtor, que é a grande vocação do cinema de Garret, mas o que existe de
moderno em seus filmes é justamente sua aparência traiçoeira. É como eles se
apresentam cristalinos e transparentes para o espectador, mas, aos poucos, vão
revelando suas dobras: seus filmes são verdadeiros jogos com a narrativa, como
um jogo de espelhos em que não sabemos bem o que vemos. Real ou sonho, alucinação
ou delírio, passado ou presente, sensatez ou loucura - aspectos que formam
camadas que levam o espectador a uma espécie de transe. Um transe narrativo, um
estado cinematográfico. Ainda que dialogue conscientemente com a dramaturgia
dos folhetins baratos e das novelas de banca de jornal, a habilidade de Garret
- ou ainda, o que o torna um autor
moderno - é o seu gosto pelo cinema, sua vocação pelo cinematográfico.
Neses três filmes, o que nos interessa, mais do que uma narrativa ardilosa que
coloca camadas entre o real e o imaginário, é como isso parece quase uma mera
desculpa para fazer cinema. Mais do que contar histórias, a habilidade de
Garret é por como mostrá-las visualmente, inserindo climas que perturbam e
desorientam o esectador. E que ao mesmo tempo o fascinam. É essa dubiedade
entre perturbar o espectador e fasciná-lo, ou ainda, entre o distanciamento e o
prazer, que seus filmes mostram sua face pessoal. Prazer - essa palavra muito adequada aos filmes de Garret. O que
vemos são personagens que procuram se entregar a prazeres proibidos, a
sentimentos adormecidos - e quando isso vai acontecer, o que vem em seguida não
é propriamente um doce sentimento romântico de libertação, mas algo que mescla
prazer e dor, o sublime e a perversão. Talvez os personagens ainda não estejam
totalmente prontos para se entregarem de fato ao que realmente mais desejam,
como corpo e como alma. O que desejam? - talvez essa seja outra boa pergunta
para enfrentar os filmes de Garret. Talvez quando os personagens descubram o que
realmente desejam eles percebam que o desejo pode vir acompanhado da morte, ou
da dor. Não é à toa que os três filmes giram em torno da morte - esse fantasma
que só serve para "atazanar" os vivos, pregando-os peças,
divertindo-se macabramente com eles. Por isso, uma certa atmosfera de terror,
de suspense, de contato com o desconhecido, com o perverso, com o doentio, com
o fim. Há também um enorme gosto de cinema nos filmes de Garret por seu desejo
de propor um jogo entre os gêneros. Por trás das convenções da pornochanchada,
o drama romântico é combinado com o terror psicológico - erótico, drama e
suspense. Os três gêneros formam camadas de espelhos que complexificam as
relações entre o que vemos e o que é imaginado - o que é trabalhado de formas
diversas mas com vários paralelos entre esses três admiráveis filmes. Ainda, é
curioso como Garret trabalha na chave do cinema psicológico - há um certo quê
freudiano, um certo tom de inconsciente, do adormecido, que ressoa nos
personagens, mas ao mesmo tempo, existe uma aura de fantástico, existe um gosto
pelos jogos narrativos que faz com que os filmes escapem dos dramalhões
psicológicos à la Khouri ou mesmo Bergman. Pois Garret não parece propriamente
interessado em aprofundar as complexidades psicológicas dos personagens mas o
faz apenas no contexto em que isso o ajuda a fazer cinema. E o que é
"fazer cinema"?: é compor uma atmosfera ambígua, é o prazer em
manipular os elementos de linguagem (a luz, os movimentos da câmera, a duração
do plano, o tempo do corte, etc.). Não me parece haver nada de mais profundo a
não ser o próprio desvelamento do jogo cinematográfico - essa é a liberdade
anárquica do projeto de Garret.
Aqui, não terei fôlego para aprofundar mais algumas questões
desses três admiráveis filmes - e o quanto eles têm em comum e o que diferem
entre si. Quando falamos em "jogos narrativos" e em "espelhos",
mais do que o interior dos filmes, há outros jogos que se compõem quando
pensamos esses três filmes como um corpo. São três filmes de personagens que se
retiram numa casa de praia, e, a certo ponto, por sua solidão, não sabem mais
se estão perdendo a razão. Chegamos a achar que eles podem estar loucos, e a
própria narrativa vai "perdendo a razão" junto com seus personagens,
vai se estilhaçando de maneira contínua, de modo que, em algum momento, não
sabemos mais precisar o que aconteceu de fato ou não. Há um mergulho no
psicológico desses personagens mas nos interessa a narrativa, mais do que as
motivações psicológicas. Ou seja, mais do que as causas como superação do
trauma, interessa o desenvolvimento da trama, ou ainda, os impactos, ou o
futuro. O que há por vir? Onde isso vai nos levar? A que proporções essa
delírio vai chegar? É dessa forma que se revela o ápice da consciência
cinematográfica de Garret.
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