Duas vezes Pialat
Nós não envelheceremos juntos | Nous ne vieillirons pas ensemble | Maurice Pialat | 1972
A boca aberta | La gueule ouverte | Maurice Pialat | 1974
Disponíveis em conjunto no makingoff.org – o principal canal de exibição de filmes no Brasil – esses dois filmes de Maurice Pialat, realizados no início dos anos setenta, permanecem extramamente contemporâneos, talvez até mais do que quando foram produzidos. Esses filmes nos ajudam a jogar luz para um certo cinema francês dos anos setenta, que não se filiava diretamente à nouvelle vague francesa, mas herda um certo diálogo pela busca de uma nova dramaturgia, menos esquemática que o grosso do cinema clássico. Esses dois filmes de Pialat formam, portanto, uma “geração de entremeio”, também composta por realizadores nômades como Jean Eustache, Chantal Akerman, Philippe Garrel, e alguns outros. Há, no entanto, diferenças claras entre os filmes desses realizadores. Esses dois filmes do Pialat se afastam muito do cinema da Chantal da época, mais próxima às influências do estruturalismo de sua estada nos Estados Unidos. O que me parece formidável nesses filmes do Pialat está em sua opção quase suicida, sem concessões, a uma recusa do espetáculo, a uma recusa da beleza. Quando se filma a decadência de um casal, ou a decadência da vida, uma opção (operística) é preencher esse ocaso com um revestimento belo. Ideias de sacrifício, redenção e culpa se misturam nesse invólucro. Nesse aspecto, há pouco a ser acrescentado à crítica que Guiguet escreveu sobre A boca aberta: a recusa de um “estilo”, ou ainda, a recusa “da arte” é uma opção ética de Pialat para representar a vida de uma forma digna. Interessa a Pialat mais do que desenvolver os cacoetes de um certo cinema autoral – muito em voga na época (e até hoje!) – mergulhar no corpo de seus personagens, vislumbrar os sintomas desse mal estar na platitude, nos acontecimentos do dia-a-dia, sem metafísica, sem culpa e sem expiação dos pecados da existência. Uma narrativa fragmentada, com grandes elipses temporais, entrecortada por planos longos. Opções de composição de quadro e de encenação em geral econômicas, deixando espaço para o gesto e para a expressão dos atores. Um olhar atento para os gestos e para o corpo, para o que não é dito (há algo entre esses personagens que nunca é dito, que permanece na penumbra, por mais verborrágico que o filme seja). São nesses interstícios que esses dois filmes de Pialat se revelam contemporâneos. Falam de um mal estar (a falência dos anos sessenta?) que se entranha no cotidiano e no corpo das pessoas, sem psicologia, sem vitimização, sem culpa.
Parece que Nós não envelheceremos juntos fez um relativo sucesso comercial. Estranho. É um filme sobre um casal que tenta ficar junto, eles se amam, eles não se amam, eles se odeiam, eles sobrevivem, eles precisam um do outro, eles não possuem nada. Está claro desde o título que essa tentativa será fracassada. Uma tragédia parece se anunciar mas nunca se consome. É um filme violento. Pialat não quer fazer lirismo da “vida como ela é”. Os personagens não sabem o que querem. Tentam se agarrar um ao outro porque é tudo o que têm, mas simplesmente não conseguem. Têm raiva, amam, é tudo misturado. Não há progressão dramática, desenvolvimento, construção em crescendo. E o filme procura ficar junto à pele deles mas permanece numa distância. Não é possível dizer quem são, o que desejam. Precisam ficar juntos, não podem ficar juntos. É um filme que permanece conosco após a exibição. Sobre esses filmes, Pilat diz “há momentos”.
Realizado logo depois, A boca aberta aprofunda e radicaliza o que já estava presente no filme anterior. É de um desencanto e de um poder crítico de observação que só me lembro nos filmes de Bresson. É muito bonito ver o texto do Guiguet sobre esse filme do Pialat porque sua admiração verdadeira e profunda por esse filme nos faz lembrar de seus próprios filmes, que Guiguet veio a realizar anos depois. A boca aberta é sobre uma família em decomposição. Quando digo decomposição, falo em decomposião em seu aspecto físico mesmo, como o título aponta. Tudo está no corpo. A mãe morre numa cama, o pai é um mulherengo, o filho parece trilhar o mesmo caminho do pai. Outra geração? Mudança de hábitos do interior para a metrópole? Pialat não é tão otimista. A boca aberta é sobre a morte. Mas não há redenção. Como bem diz Guiguet, não há beleza nessa morte, mas também não há feiúra, não há exploração da miséria. Por isso é desconcertante. Como hoje se fala tanto no “público para um certo cinema brasileiro”, fico pensando: quem hoje gostaria de pagar R$20 para ir a um multiplex para assistir a uma família se decompondo? Pialat fala disso, independentemente se as pessoas não estão preparadas para ouvi-lo. As elipses se esgarçam; os planos se alongam; a verborragia se mistura ao silêncio; a típica mise en scène discreta de Pialat se confunde com um extremo rigor. Um rigor ético. Algumas cenas realmente memoráveis. Um travelling para trás quando o filho deixa a cidade do pai (me lembra um pouco o fim do News from home, mas é bastante diferente!). Uma música que o filho ouve com a mãe, antes da doença. O filho e o pai ao pé do leito de morte (“acabou-se!”). Não há mais tempo de lamentações. É preciso sobreviver. Grande cinema. Esses pequenos filmes precisam ser redescobertos. Já estão sendo. Estão vivos. Inesperadamente falam sobre o nosso mundo de hoje.
A boca aberta | La gueule ouverte | Maurice Pialat | 1974
Disponíveis em conjunto no makingoff.org – o principal canal de exibição de filmes no Brasil – esses dois filmes de Maurice Pialat, realizados no início dos anos setenta, permanecem extramamente contemporâneos, talvez até mais do que quando foram produzidos. Esses filmes nos ajudam a jogar luz para um certo cinema francês dos anos setenta, que não se filiava diretamente à nouvelle vague francesa, mas herda um certo diálogo pela busca de uma nova dramaturgia, menos esquemática que o grosso do cinema clássico. Esses dois filmes de Pialat formam, portanto, uma “geração de entremeio”, também composta por realizadores nômades como Jean Eustache, Chantal Akerman, Philippe Garrel, e alguns outros. Há, no entanto, diferenças claras entre os filmes desses realizadores. Esses dois filmes do Pialat se afastam muito do cinema da Chantal da época, mais próxima às influências do estruturalismo de sua estada nos Estados Unidos. O que me parece formidável nesses filmes do Pialat está em sua opção quase suicida, sem concessões, a uma recusa do espetáculo, a uma recusa da beleza. Quando se filma a decadência de um casal, ou a decadência da vida, uma opção (operística) é preencher esse ocaso com um revestimento belo. Ideias de sacrifício, redenção e culpa se misturam nesse invólucro. Nesse aspecto, há pouco a ser acrescentado à crítica que Guiguet escreveu sobre A boca aberta: a recusa de um “estilo”, ou ainda, a recusa “da arte” é uma opção ética de Pialat para representar a vida de uma forma digna. Interessa a Pialat mais do que desenvolver os cacoetes de um certo cinema autoral – muito em voga na época (e até hoje!) – mergulhar no corpo de seus personagens, vislumbrar os sintomas desse mal estar na platitude, nos acontecimentos do dia-a-dia, sem metafísica, sem culpa e sem expiação dos pecados da existência. Uma narrativa fragmentada, com grandes elipses temporais, entrecortada por planos longos. Opções de composição de quadro e de encenação em geral econômicas, deixando espaço para o gesto e para a expressão dos atores. Um olhar atento para os gestos e para o corpo, para o que não é dito (há algo entre esses personagens que nunca é dito, que permanece na penumbra, por mais verborrágico que o filme seja). São nesses interstícios que esses dois filmes de Pialat se revelam contemporâneos. Falam de um mal estar (a falência dos anos sessenta?) que se entranha no cotidiano e no corpo das pessoas, sem psicologia, sem vitimização, sem culpa.
Parece que Nós não envelheceremos juntos fez um relativo sucesso comercial. Estranho. É um filme sobre um casal que tenta ficar junto, eles se amam, eles não se amam, eles se odeiam, eles sobrevivem, eles precisam um do outro, eles não possuem nada. Está claro desde o título que essa tentativa será fracassada. Uma tragédia parece se anunciar mas nunca se consome. É um filme violento. Pialat não quer fazer lirismo da “vida como ela é”. Os personagens não sabem o que querem. Tentam se agarrar um ao outro porque é tudo o que têm, mas simplesmente não conseguem. Têm raiva, amam, é tudo misturado. Não há progressão dramática, desenvolvimento, construção em crescendo. E o filme procura ficar junto à pele deles mas permanece numa distância. Não é possível dizer quem são, o que desejam. Precisam ficar juntos, não podem ficar juntos. É um filme que permanece conosco após a exibição. Sobre esses filmes, Pilat diz “há momentos”.
Realizado logo depois, A boca aberta aprofunda e radicaliza o que já estava presente no filme anterior. É de um desencanto e de um poder crítico de observação que só me lembro nos filmes de Bresson. É muito bonito ver o texto do Guiguet sobre esse filme do Pialat porque sua admiração verdadeira e profunda por esse filme nos faz lembrar de seus próprios filmes, que Guiguet veio a realizar anos depois. A boca aberta é sobre uma família em decomposição. Quando digo decomposição, falo em decomposião em seu aspecto físico mesmo, como o título aponta. Tudo está no corpo. A mãe morre numa cama, o pai é um mulherengo, o filho parece trilhar o mesmo caminho do pai. Outra geração? Mudança de hábitos do interior para a metrópole? Pialat não é tão otimista. A boca aberta é sobre a morte. Mas não há redenção. Como bem diz Guiguet, não há beleza nessa morte, mas também não há feiúra, não há exploração da miséria. Por isso é desconcertante. Como hoje se fala tanto no “público para um certo cinema brasileiro”, fico pensando: quem hoje gostaria de pagar R$20 para ir a um multiplex para assistir a uma família se decompondo? Pialat fala disso, independentemente se as pessoas não estão preparadas para ouvi-lo. As elipses se esgarçam; os planos se alongam; a verborragia se mistura ao silêncio; a típica mise en scène discreta de Pialat se confunde com um extremo rigor. Um rigor ético. Algumas cenas realmente memoráveis. Um travelling para trás quando o filho deixa a cidade do pai (me lembra um pouco o fim do News from home, mas é bastante diferente!). Uma música que o filho ouve com a mãe, antes da doença. O filho e o pai ao pé do leito de morte (“acabou-se!”). Não há mais tempo de lamentações. É preciso sobreviver. Grande cinema. Esses pequenos filmes precisam ser redescobertos. Já estão sendo. Estão vivos. Inesperadamente falam sobre o nosso mundo de hoje.
Comentários
abraço!
ythallo.