Tiradentes (II): As rachaduras de um espaço: Balança mas não cai e HU
O Festival de Tiradentes em 2012 exibiu dois filmes que permitem comparações diretas por suas semelhanças e diferenças. Esses dois filmes me interessam na medida em que examinam um espaço através de um determinado olhar. É claro como a examinação dos espaços é recorrente no cinema contemporâneo, e como esse olhar para os espaços se reflete num espaço-tempo característico. O espaço como paisagem, que não se torna “pano de fundo” para encenar algo outro mas quase protagonista. É curioso também como esses filmes formulam estratégias que reencenam possibilidades de habitar um espaço, preenchendo esses espaços com vazios e silêncios. Ausências que falam a partir de estratégias distintas. Um passado não realizado, um projeto inconcluso, o tempo que continua. O fim está próximo, o presente não confirmou as expectativas do passado, as coisas mudam, sempre para pior. Os rastros da memória nesses espaços, espaços vistos como corpos dissecados por uma câmera (um olhar). A câmera habita esses espaços como se fossem uma casa. Acredito que uma certa ideia de casa (“lar”) liga os três filmes. Espaço, paisagem, vãos, memória, corpo, lar.
O primeiro deles é Balança mas não cai, longa de Leonardo Barcelos, da Teia, coletivo de Minas Gerais que vem realizando trabalhos significativos no cinema brasileiro contemporâneo, em geral relacionado com o documentário. Leo Barcelos retoma uma tradição primeira da Teia de fazer dialogar o documentário com as artes visuais, ou ainda, com a videoarte. Fortemente baseado num dispositivo visual, Balança mas não cai se afasta de alguns filmes recentes da Teia que possuem uma arquitetura cênica minimalista, focados na experiência do encontro do realizador com pessoas, em especial A falta que nos faz e O céu sobre os ombros. A concisão e a precisão íntima desses dois últimos filmes entram em contraste com o tom expansivo, quase neobarroco do filme de Barcelos.
Seu ponto de partida é um espaço físico bem definido: o edifício Balança mas não cai, em Belo Horizonte. Para radiografar o prédio, o realizador utiliza um conjunto de estratégias: entrevistas com antigos moradores, adequadamente vestidos para a ocasião; imagens de arquivo abodando a importância histórica do lugar; cenas de ficção em que atores incorporam uma certa aura mística do lugar; planos formalistas do espaço vazio; inserções videográficas como grafismos, rabiscos, filtros e letras inseridos sobre a imagem, como relações de texturas; planos em que os antigos moradores do local reencenam como habitavam esse lugar, mesclados com fusões ou com imagens do próprio diretor ou equipe dirigindo a cena; planos de câmera subjetiva em que o realizador, em tom confessional, analisa o impacto emocional da pesquisa sobre si mesmo. Esse conjunto de estratégias de abordagem embaralha o filme, como se fosse um inventário de suas próprias possibilidades, como um caleidoscópio de sensações, físicas, analíticas, motoras, sensóreas, emocionais. A síntese desse projeto está nos impressionantes planos de abertura do filme, em que uma espécie de grua circula o prédio, primeiro através de seu interior, e depois, por fora do prédio. Esse movimento vertiginoso que desorienta o espectador, que “nunca pára quieto” e que nunca consegue “dar conta” desse mesmo movimento talvez seja uma das imagens mais fieis ao espírito do filme, que mostra tanto as suas ambições quanto as próprias limitações desse projeto. Ao mesmo tempo em que as ruínas desse espaço físico interessam como grafismos de um espaço (as paredes do prédio como um corpo através do qual a câmera intervem através de texturas e formas, de incrustações sobre sua superfície), o diretor também se deixa fascinar pelos rastros de um passado, pelas memórias de seus antigos habitantes, e por uma certa aura de proibido, de libertário e de anárquico que o prédio emana. Ou seja, para além desse espaço físico (o corpo como pele, ou as paredes como espaço), interessa também a Barcelos identificar um certo modo de habitar o prédio, ou ainda, uma geografia íntima, um comportamento “esprevitado”, um certo tom de rebeldia, um cheiro libidinoso, mas que agora reside apenas no passado ou em seus rastros. Até que ponto esse espírito libertário do passado pode ser sentido hoje através de uma radiografia desse espaço físico? – talvez essa seja a pergunta-chave que Balança mas não cai tenta se fazer. Longe de tentar responder, e em analogia com os “planos de vertigem” que considero que são uma síntese visual do filme, é como se o próprio filme, por meio de suas viragens e diversas estratégias de abordagem que necessariamente “não se encaixam” num todo orgânico, “balançasse mas não caísse”.
Já HU, de Pedro Urano e Joana Traub Cseko, é “bem mais sólido” que Balança mas não cai (faço uma ironia, já que o HU foi implodido, ao contrário do primeiro...). Vejo o filme como uma fusão orgânica do trabalho de Pedro Urano como fotógrafo e cineasta e do rigor de Joana Cseko como pesquisadora e artista visual, pois há um rigor, na estrutura, nos planos e nos tempos que Estrada real da cachaça, longa anterior de Urano, não tinha, em sua delirante estrutura de caleidoscópio. Aqui, há uma fusão entre cinema e arte visual, ou ainda, entre o instinto e a razão, mais equilibrados. Talvez o que possibilite essa “fusão orgânica” entre os dois diretores seja o fato de que HU é um filme de arquitetura. Penso, dessa forma, o próprio título do filme – HU – como uma relação arquitetônica, entre as linhas retas e curvas das duas letras, pelos espaços vazios que fazem ressoar sonoridades: HU também é um filme sobre os espaços vazios entre o “H” e o “U” (ou ainda, sobre a estratégia do filme em dividir a tela em dois quadrantes de igual proporção, mas que não são exatamente simétricos). Me interesso por HU não meramente pela radiografia que faz de um grande projeto arquitetônico abandonado, ou pelo tom de denúncia ao descaso com a saúde pública no país, mas essencialmente o que me interessa no filme é sua relação com a arquitetura, em como os diretores encontraram opções de encenar formas como um espaço físico pode ser habitado. Colocando de outra forma, vejo o hospital universitário como uma casa, que precisa ser habitada. Mas diferentemente do filme de Leo Barcelos, que deixa um pouco o olhar da arquitetura para acompanhar antigos moradores desse prédio, como um rastro nostálgico de um certo tipo de comportamento, em HU o que importa é a arquitetura não somente como um espaço físico, mas como representação política de uma forma arejada de habitar um espaço. Ou seja, as questões da geografia humana de HU são também questões formais, ou ainda, questões cinematográficas de como representar um espaço que, para além da beleza e do rigor de sua construção, deve ser vivido e não simplesmente admirado como projeto. Não sei se me faço claro. A própria arquitetura do HU é impressionantemente ousada como projeto arquitetônico, como projeto formal. De outro lado, esse belo espaço formal não tem méritos meramente formais: é um espaço para ser habitado, para ser vivido, isto é, é uma casa. É um “espaço arejado”, de entrada de vento e sol (de ar e luz). Esse projeto, que alia arrojo formal a um modo de habitar um espaço, é um projeto político. Da mesma forma, o filme HU se intessa pelo rigor do olhar plástico do enquadramento dos espaços, mas transcende seu olhar formalista buscando os modos de como habitar esse espaço. É isso que o faz um filme político: não por “denunciar” o descaso com a saúde pública e o abandono do prédio, mas em ser essencialmente “um filme de arquitetura”, em pensar cinematograficamente como habitar um espaço “de forma arejada”, em pensar como o projeto arquitetônico é também um projeto político. Essas opções ficam claras ao final do filme, quando o abandono do prédio é associado com um abandono de um projeto arquitetônico ou ainda com o abandono de uma cidade. Diferentemente do filme de Leo Barcelos, que mostra a “renovação” do Balança, agora como empreendimento imobiliário de sucesso, ou seja, “a transgressão absorvida pelo mercado”, a espetacular implosão do HU mostra o fim de um projeto. Enquanto Barcelos se interessa pela “aura fantasmática” dos “escombros” do autêntico Balança, Joana e Pedro se interessam mais pelo desfazimento do concreto, pela poeira que dá lugar ao vento que circulava pelos amplos corredores do hospital. Nesse sentido, é sintomático um corte do filme, em que se passa de uma microcâmera que entra pela boca e filma os órgãos internos de um paciente para um plano que mostra as rachaduras da estrutura física do prédio, com suas tubulações e vigas deterioradas. HU não é o cinema observacional de “Hospital” em que Wiseman acompanha as relações humanas entre funcionários e pacientes, como reflexo das contradições da estrutura administrativa e política de uma instituição pública, mas sim analisa essas mesmas contradições a partir de uma radiografia física, de um “raio-X” das entranhas físicas (fisiológicas) desse corpo. O hospital é visto portanto menos em seu aspecto sociológico ou psicológico e mais como um corpo. O hospital como uma casa, a casa como arquitetura, e a arquitetura como um corpo.
O primeiro deles é Balança mas não cai, longa de Leonardo Barcelos, da Teia, coletivo de Minas Gerais que vem realizando trabalhos significativos no cinema brasileiro contemporâneo, em geral relacionado com o documentário. Leo Barcelos retoma uma tradição primeira da Teia de fazer dialogar o documentário com as artes visuais, ou ainda, com a videoarte. Fortemente baseado num dispositivo visual, Balança mas não cai se afasta de alguns filmes recentes da Teia que possuem uma arquitetura cênica minimalista, focados na experiência do encontro do realizador com pessoas, em especial A falta que nos faz e O céu sobre os ombros. A concisão e a precisão íntima desses dois últimos filmes entram em contraste com o tom expansivo, quase neobarroco do filme de Barcelos.
Seu ponto de partida é um espaço físico bem definido: o edifício Balança mas não cai, em Belo Horizonte. Para radiografar o prédio, o realizador utiliza um conjunto de estratégias: entrevistas com antigos moradores, adequadamente vestidos para a ocasião; imagens de arquivo abodando a importância histórica do lugar; cenas de ficção em que atores incorporam uma certa aura mística do lugar; planos formalistas do espaço vazio; inserções videográficas como grafismos, rabiscos, filtros e letras inseridos sobre a imagem, como relações de texturas; planos em que os antigos moradores do local reencenam como habitavam esse lugar, mesclados com fusões ou com imagens do próprio diretor ou equipe dirigindo a cena; planos de câmera subjetiva em que o realizador, em tom confessional, analisa o impacto emocional da pesquisa sobre si mesmo. Esse conjunto de estratégias de abordagem embaralha o filme, como se fosse um inventário de suas próprias possibilidades, como um caleidoscópio de sensações, físicas, analíticas, motoras, sensóreas, emocionais. A síntese desse projeto está nos impressionantes planos de abertura do filme, em que uma espécie de grua circula o prédio, primeiro através de seu interior, e depois, por fora do prédio. Esse movimento vertiginoso que desorienta o espectador, que “nunca pára quieto” e que nunca consegue “dar conta” desse mesmo movimento talvez seja uma das imagens mais fieis ao espírito do filme, que mostra tanto as suas ambições quanto as próprias limitações desse projeto. Ao mesmo tempo em que as ruínas desse espaço físico interessam como grafismos de um espaço (as paredes do prédio como um corpo através do qual a câmera intervem através de texturas e formas, de incrustações sobre sua superfície), o diretor também se deixa fascinar pelos rastros de um passado, pelas memórias de seus antigos habitantes, e por uma certa aura de proibido, de libertário e de anárquico que o prédio emana. Ou seja, para além desse espaço físico (o corpo como pele, ou as paredes como espaço), interessa também a Barcelos identificar um certo modo de habitar o prédio, ou ainda, uma geografia íntima, um comportamento “esprevitado”, um certo tom de rebeldia, um cheiro libidinoso, mas que agora reside apenas no passado ou em seus rastros. Até que ponto esse espírito libertário do passado pode ser sentido hoje através de uma radiografia desse espaço físico? – talvez essa seja a pergunta-chave que Balança mas não cai tenta se fazer. Longe de tentar responder, e em analogia com os “planos de vertigem” que considero que são uma síntese visual do filme, é como se o próprio filme, por meio de suas viragens e diversas estratégias de abordagem que necessariamente “não se encaixam” num todo orgânico, “balançasse mas não caísse”.
Já HU, de Pedro Urano e Joana Traub Cseko, é “bem mais sólido” que Balança mas não cai (faço uma ironia, já que o HU foi implodido, ao contrário do primeiro...). Vejo o filme como uma fusão orgânica do trabalho de Pedro Urano como fotógrafo e cineasta e do rigor de Joana Cseko como pesquisadora e artista visual, pois há um rigor, na estrutura, nos planos e nos tempos que Estrada real da cachaça, longa anterior de Urano, não tinha, em sua delirante estrutura de caleidoscópio. Aqui, há uma fusão entre cinema e arte visual, ou ainda, entre o instinto e a razão, mais equilibrados. Talvez o que possibilite essa “fusão orgânica” entre os dois diretores seja o fato de que HU é um filme de arquitetura. Penso, dessa forma, o próprio título do filme – HU – como uma relação arquitetônica, entre as linhas retas e curvas das duas letras, pelos espaços vazios que fazem ressoar sonoridades: HU também é um filme sobre os espaços vazios entre o “H” e o “U” (ou ainda, sobre a estratégia do filme em dividir a tela em dois quadrantes de igual proporção, mas que não são exatamente simétricos). Me interesso por HU não meramente pela radiografia que faz de um grande projeto arquitetônico abandonado, ou pelo tom de denúncia ao descaso com a saúde pública no país, mas essencialmente o que me interessa no filme é sua relação com a arquitetura, em como os diretores encontraram opções de encenar formas como um espaço físico pode ser habitado. Colocando de outra forma, vejo o hospital universitário como uma casa, que precisa ser habitada. Mas diferentemente do filme de Leo Barcelos, que deixa um pouco o olhar da arquitetura para acompanhar antigos moradores desse prédio, como um rastro nostálgico de um certo tipo de comportamento, em HU o que importa é a arquitetura não somente como um espaço físico, mas como representação política de uma forma arejada de habitar um espaço. Ou seja, as questões da geografia humana de HU são também questões formais, ou ainda, questões cinematográficas de como representar um espaço que, para além da beleza e do rigor de sua construção, deve ser vivido e não simplesmente admirado como projeto. Não sei se me faço claro. A própria arquitetura do HU é impressionantemente ousada como projeto arquitetônico, como projeto formal. De outro lado, esse belo espaço formal não tem méritos meramente formais: é um espaço para ser habitado, para ser vivido, isto é, é uma casa. É um “espaço arejado”, de entrada de vento e sol (de ar e luz). Esse projeto, que alia arrojo formal a um modo de habitar um espaço, é um projeto político. Da mesma forma, o filme HU se intessa pelo rigor do olhar plástico do enquadramento dos espaços, mas transcende seu olhar formalista buscando os modos de como habitar esse espaço. É isso que o faz um filme político: não por “denunciar” o descaso com a saúde pública e o abandono do prédio, mas em ser essencialmente “um filme de arquitetura”, em pensar cinematograficamente como habitar um espaço “de forma arejada”, em pensar como o projeto arquitetônico é também um projeto político. Essas opções ficam claras ao final do filme, quando o abandono do prédio é associado com um abandono de um projeto arquitetônico ou ainda com o abandono de uma cidade. Diferentemente do filme de Leo Barcelos, que mostra a “renovação” do Balança, agora como empreendimento imobiliário de sucesso, ou seja, “a transgressão absorvida pelo mercado”, a espetacular implosão do HU mostra o fim de um projeto. Enquanto Barcelos se interessa pela “aura fantasmática” dos “escombros” do autêntico Balança, Joana e Pedro se interessam mais pelo desfazimento do concreto, pela poeira que dá lugar ao vento que circulava pelos amplos corredores do hospital. Nesse sentido, é sintomático um corte do filme, em que se passa de uma microcâmera que entra pela boca e filma os órgãos internos de um paciente para um plano que mostra as rachaduras da estrutura física do prédio, com suas tubulações e vigas deterioradas. HU não é o cinema observacional de “Hospital” em que Wiseman acompanha as relações humanas entre funcionários e pacientes, como reflexo das contradições da estrutura administrativa e política de uma instituição pública, mas sim analisa essas mesmas contradições a partir de uma radiografia física, de um “raio-X” das entranhas físicas (fisiológicas) desse corpo. O hospital é visto portanto menos em seu aspecto sociológico ou psicológico e mais como um corpo. O hospital como uma casa, a casa como arquitetura, e a arquitetura como um corpo.
Comentários