Aterro do Flamengo
ATERRO DO FLAMENGO
de Alessandra Bergamaschi
Abraçar o mundo não significa simplesmente perceber o que nos rodeia mas efetivamente não se omitir diante do que vemos. Simplesmente ver não basta, é preciso que o ato de ver seja o ponto de partida de um gesto diante do mundo.
Essa é uma das formas através das quais é possível ver ATERRO DO FLAMENGO, de Alessandra Bergamaschi. É um filme que encena (ou reencena) um ato de ver um mundo essencialmente como um gesto, e problematiza esse ato através dos mínimos elementos de encenação. Aqui as palavras que estão em jogo não são simplesmente “um ato de ver” mas também “encenação”.
O que é o filme? Resposta: uma câmera na janela que filma o Aterro do Flamengo. Ou melhor, uma área do Aterro do Flamengo que serve para exercícios físicos (uma miniacademia a céu aberto) sendo filmada do ponto de vista da janela de um apartamento de frente para o Aterro, em plano geral, com câmera fixa, num moderado plongée. Nesse plano, acontece algo. O que acontece?
Bergamaschi então nos faz ver o que acontece. Mas o que acontece? Acontece que as pessoas não veem.
No filme Graveyard of Honour, de Takashi Miike, um filme de ficção japonês de 2002, há uma cena em que um personagem caminha coberto de sangue pelas ruas. O diretor optou em filmar essa cena com uma câmera escondida, e percebeu que simplesmente as pessoas caminhavam ao seu lado como se ignorassem a presença desse homem ensanguentado. A própria equipe se impressionou com a indiferença das pessoas. O diretor concluiu que as pessoas fizeram de conta que não o viram ou porque ficaram amedrontadas ou porque simplesmente não percebem o que está em sua volta. (ver aqui)
No filme de Bergamaschi há um corpo estirado no chão sobre um dos aparelhos de ginástica. Ele não se levanta. Concluímos que provavelmente deve ter sofrido um ataque cardíaco fulminante durante um exercício físico. Com o tempo, as pessoas ao redor começam a suspeitar mas ninguém se aproxima de fato. É uma pessoa de meia idade bem vestida, não está ensanguentado. Aparentemente não haveria nenhum motivo em si para as pessoas se amedrontarem, como no filme de Miike. Talvez as pessoas não o ajudem com medo de serem incriminadas (??!!), porque não querem perder tempo na delegacia ou qualquer lugar que seja, etc. Outras continuam a fazer seus exercícios físicos diários, praticamente ao lado do corpo inerte.
Alessandra nos faz ver o que se passa. Como? Através de um grande plano geral fixo. As pessoas continuam suas rotinas como se nada estivesse acontecendo. Tentam ignorar o que se passa. Ou porque não percebem ou porque preferem ignorar.
Podemos fazer mil leituras. Uma delas é que o filme se passa numa área de classe média alta no Rio de Janeiro, onde as pessoas buscam lazer e condicionamento físico diante da estressante rotina urbana. Outra é que o próprio olhar da câmera faz parte desse mundo, porque o olhar vem do interior de um prédio de frente para o Aterro, caríssimo.
De qualquer forma, quando o filme acaba, temos vergonha do que estamos fazendo com nossas próprias vidas.
Mas, acima de tudo, o que gostaria de apontar aqui é a estratégia de encenação de Alessandra. A importância desse longo grande plano geral fixo como um gesto de nos fazer ver o que se passa. Para ver, antes de saber que “há algo a ser visto”, é preciso querer ver. Há algo a ser visto no filme? Se há algo, é sobre a importância de ver. Colocando de outra forma, Aterro do Flamengo é um filme sobre o próprio ato de ver; ver como um gesto político diante de um mundo míope. Um mundo que acha que não quer ver porque não há nada de interessante a ser visto. Sobre como não podemos estar indiferentes ao que vemos, pois se não considerarmos o ato de ver como um gesto político estamos alienados do mundo.
E qual é a encenação de Alessandra? Um longo grande plano geral fixo. Não há closes ou zooms para o corpo inerte, ou movimentos de câmera que nos apontam para as pessoas que não veem. Para ver Aterro do Flamengo, é preciso, antes de tudo, ver. Ao mesmo tempo, Alessandra recorta um certo espaço de visão (é inevitável...). Um olhar sobre um olhar, acima de tudo. O que há para ser visto? O próprio processo de ver. A sutileza dessa estratégia de encenação é o grande trunfo de Aterro do Flamengo: muito menos um “mero registro” de uma situação excepcional do que essencialmente um filme sobre o próprio processo de ver como um gesto político diante de um mundo míope e indiferente.
(obrigado a Carlos Alberto Mattos)
de Alessandra Bergamaschi
Abraçar o mundo não significa simplesmente perceber o que nos rodeia mas efetivamente não se omitir diante do que vemos. Simplesmente ver não basta, é preciso que o ato de ver seja o ponto de partida de um gesto diante do mundo.
Essa é uma das formas através das quais é possível ver ATERRO DO FLAMENGO, de Alessandra Bergamaschi. É um filme que encena (ou reencena) um ato de ver um mundo essencialmente como um gesto, e problematiza esse ato através dos mínimos elementos de encenação. Aqui as palavras que estão em jogo não são simplesmente “um ato de ver” mas também “encenação”.
O que é o filme? Resposta: uma câmera na janela que filma o Aterro do Flamengo. Ou melhor, uma área do Aterro do Flamengo que serve para exercícios físicos (uma miniacademia a céu aberto) sendo filmada do ponto de vista da janela de um apartamento de frente para o Aterro, em plano geral, com câmera fixa, num moderado plongée. Nesse plano, acontece algo. O que acontece?
Bergamaschi então nos faz ver o que acontece. Mas o que acontece? Acontece que as pessoas não veem.
No filme Graveyard of Honour, de Takashi Miike, um filme de ficção japonês de 2002, há uma cena em que um personagem caminha coberto de sangue pelas ruas. O diretor optou em filmar essa cena com uma câmera escondida, e percebeu que simplesmente as pessoas caminhavam ao seu lado como se ignorassem a presença desse homem ensanguentado. A própria equipe se impressionou com a indiferença das pessoas. O diretor concluiu que as pessoas fizeram de conta que não o viram ou porque ficaram amedrontadas ou porque simplesmente não percebem o que está em sua volta. (ver aqui)
No filme de Bergamaschi há um corpo estirado no chão sobre um dos aparelhos de ginástica. Ele não se levanta. Concluímos que provavelmente deve ter sofrido um ataque cardíaco fulminante durante um exercício físico. Com o tempo, as pessoas ao redor começam a suspeitar mas ninguém se aproxima de fato. É uma pessoa de meia idade bem vestida, não está ensanguentado. Aparentemente não haveria nenhum motivo em si para as pessoas se amedrontarem, como no filme de Miike. Talvez as pessoas não o ajudem com medo de serem incriminadas (??!!), porque não querem perder tempo na delegacia ou qualquer lugar que seja, etc. Outras continuam a fazer seus exercícios físicos diários, praticamente ao lado do corpo inerte.
Alessandra nos faz ver o que se passa. Como? Através de um grande plano geral fixo. As pessoas continuam suas rotinas como se nada estivesse acontecendo. Tentam ignorar o que se passa. Ou porque não percebem ou porque preferem ignorar.
Podemos fazer mil leituras. Uma delas é que o filme se passa numa área de classe média alta no Rio de Janeiro, onde as pessoas buscam lazer e condicionamento físico diante da estressante rotina urbana. Outra é que o próprio olhar da câmera faz parte desse mundo, porque o olhar vem do interior de um prédio de frente para o Aterro, caríssimo.
De qualquer forma, quando o filme acaba, temos vergonha do que estamos fazendo com nossas próprias vidas.
Mas, acima de tudo, o que gostaria de apontar aqui é a estratégia de encenação de Alessandra. A importância desse longo grande plano geral fixo como um gesto de nos fazer ver o que se passa. Para ver, antes de saber que “há algo a ser visto”, é preciso querer ver. Há algo a ser visto no filme? Se há algo, é sobre a importância de ver. Colocando de outra forma, Aterro do Flamengo é um filme sobre o próprio ato de ver; ver como um gesto político diante de um mundo míope. Um mundo que acha que não quer ver porque não há nada de interessante a ser visto. Sobre como não podemos estar indiferentes ao que vemos, pois se não considerarmos o ato de ver como um gesto político estamos alienados do mundo.
E qual é a encenação de Alessandra? Um longo grande plano geral fixo. Não há closes ou zooms para o corpo inerte, ou movimentos de câmera que nos apontam para as pessoas que não veem. Para ver Aterro do Flamengo, é preciso, antes de tudo, ver. Ao mesmo tempo, Alessandra recorta um certo espaço de visão (é inevitável...). Um olhar sobre um olhar, acima de tudo. O que há para ser visto? O próprio processo de ver. A sutileza dessa estratégia de encenação é o grande trunfo de Aterro do Flamengo: muito menos um “mero registro” de uma situação excepcional do que essencialmente um filme sobre o próprio processo de ver como um gesto político diante de um mundo míope e indiferente.
(obrigado a Carlos Alberto Mattos)
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