Maysa: considerações iniciais
É uma coisa um tanto ridícula falar de uma minissérie após apenas dois capítulos. É a mesma coisa de falar de um filme vendo apenas 20 minutos, ou falar de um livro tendo lido apenas 15 páginas. Mas ainda assim eu vou tentar fazê-lo, mesmo sabendo da inutilidade desse gesto. Isso porque a série tem uma diferença crucial em relação a um filme, por exemplo: não conseguimos vê-la por completo, não temos como ter uma fruição completa da obra como uma unidade. Então, entre um capítulo e outro ficamos pensando, trabalhando em nossa cabeça um conjunto de elementos; em maior ou menor grau, especialmente se acompanhamos a série, comemos, dormimos, sonhamos com ela, com alguns de seus elementos, convivemos com ela. No ato de “conviver” essa série se multiplica, e nesse sentido é mais interessante que um filme.
Bom, dado isso, quero falar algo sobre a minissérie Maysa. O que me interessou nessa série foram algumas coisas, mas indiscutivelmente o que mais me interessou em tudo isso foi o fato de um filho falar de uma mãe, isto é, de ser dirigida pelo Jayme Monjardim, único filho da cantora Maysa. Isso é algo que me interessa: um filho falando de uma mãe, uma obra íntima.
E mais, um ídolo musical sendo retratado não por uma jornalista, por um fã, por um escritor, mas por um filho, e ainda mais, um filho falando de uma mãe distante, já que Jayme foi criado pela avó e viveu um enorme tempo separado da mãe, e também separado do pai.
Além desse há um outro fato, que para mim me interessa muitíssimo: as contradições do processo de criação. Maysa, esse ser de beleza irradiante, essa mulher feminista, à frente de seu tempo, corajosa, impetuosa, de raro brilho, desinibida, atrevida, era, ao mesmo tempo extremamente melancólica, com enormes alterações de temperamento, depressiva, alcoólatra. Maysa ficou marcada como uma das grandes cantoras do chamado gênero “fossa”, mas a sua diferença era que não só cantava – e como cantava! – esse gênero colocando sua marca particular, mas Maysa também compunha. A análise das composições de Maysa (a “Maysa compositora”) é algo que acaba sendo subestimado em relação à forma particular como ela cantava.
O pessimismo, a tristeza, o desencanto das canções de Maysa acabam muitas vezes sendo associadas ao seu desprezo em relação aos costumes conservadores da sociedade e aos seus problemas com a família Matarazzo, mas essas características de sua obra merecem uma análise mais detalhada. Na verdade, me parece que refletem, além disso, uma dor, um sentimento do mundo que vai muito além disso, uma dor intrínseca à sua personalidade. Isso fica claro na primeira composição da cantora, o samba-canção “Adeus”, que, diz a lenda, foi composto quando Maysa tinha apenas 12 anos. Adeus, com música e letra de Maysa, diz assim, e a letra é tão clara sobre isso que nem precisa mais de comentários.
Adeus
(Maysa)
Adeus palavra tão corriqueira
Que diz-se a semana inteira
A alguém que se conhece
Adeus logo mais eu telefono
Eu agora estou com sono
Vou dormir pois amanhece
Adeus uma amiga diz à outra
Vou trocar a minha roupa
Logo mais eu vou voltar
Mas quando
Este adeus tem outro gosto
Que só nos causa desgosto
Este adeus você não dá
A tranqüilidade em exasperar esse desespero, o poder de síntese dos versos, o fatalismo, o brilhantismo do jogo de contrários (“vou dormir pois amanhece”) faz com que – sem negar um certo exagero – possamos comparar Maysa a uma espécie de “Emily Dickinson tropical”.
Como essa mulher tão ousada e cheia de vida construía versos tão melancólicos?
* * *
São esses dois temas os que mais me interessam na série: o olhar do filho e as contradições do processo de criação. Mas como isso é tratado na minissérie (por esses dois capítulos)?
De uma forma distante, de uma forma fria, de uma forma distanciada. Da forma como um diretor da maior rede de comunicações do país trabalharia o tema. A entrevista de Jayme sobre a minissérie fala em “Maysa” na terceira pessoa e sempre desconversa em relação à questão pessoal: mais do que uma ética (um distanciamento respeitoso) revela uma estética (uma assepsia). Jayme não fala de sua mãe, fala de uma mulher “que lutou pelos seus sonhos”, “que foi à frente de seu tempo”, “que lutou contra os preconceitos da sociedade”, “que tentou ser ela mesma”, etc.
Jayme fala de uma mulher, de uma mãe, mas acontece que essa não é “apenas” “uma mulher, uma mãe” especial, é A SUA MÃE.
É desse abismo que surge minha total tristeza (decepção, desencanto...) em relação a tudo o que essa minissérie representa.
Bom, dado isso, quero falar algo sobre a minissérie Maysa. O que me interessou nessa série foram algumas coisas, mas indiscutivelmente o que mais me interessou em tudo isso foi o fato de um filho falar de uma mãe, isto é, de ser dirigida pelo Jayme Monjardim, único filho da cantora Maysa. Isso é algo que me interessa: um filho falando de uma mãe, uma obra íntima.
E mais, um ídolo musical sendo retratado não por uma jornalista, por um fã, por um escritor, mas por um filho, e ainda mais, um filho falando de uma mãe distante, já que Jayme foi criado pela avó e viveu um enorme tempo separado da mãe, e também separado do pai.
Além desse há um outro fato, que para mim me interessa muitíssimo: as contradições do processo de criação. Maysa, esse ser de beleza irradiante, essa mulher feminista, à frente de seu tempo, corajosa, impetuosa, de raro brilho, desinibida, atrevida, era, ao mesmo tempo extremamente melancólica, com enormes alterações de temperamento, depressiva, alcoólatra. Maysa ficou marcada como uma das grandes cantoras do chamado gênero “fossa”, mas a sua diferença era que não só cantava – e como cantava! – esse gênero colocando sua marca particular, mas Maysa também compunha. A análise das composições de Maysa (a “Maysa compositora”) é algo que acaba sendo subestimado em relação à forma particular como ela cantava.
O pessimismo, a tristeza, o desencanto das canções de Maysa acabam muitas vezes sendo associadas ao seu desprezo em relação aos costumes conservadores da sociedade e aos seus problemas com a família Matarazzo, mas essas características de sua obra merecem uma análise mais detalhada. Na verdade, me parece que refletem, além disso, uma dor, um sentimento do mundo que vai muito além disso, uma dor intrínseca à sua personalidade. Isso fica claro na primeira composição da cantora, o samba-canção “Adeus”, que, diz a lenda, foi composto quando Maysa tinha apenas 12 anos. Adeus, com música e letra de Maysa, diz assim, e a letra é tão clara sobre isso que nem precisa mais de comentários.
Adeus
(Maysa)
Adeus palavra tão corriqueira
Que diz-se a semana inteira
A alguém que se conhece
Adeus logo mais eu telefono
Eu agora estou com sono
Vou dormir pois amanhece
Adeus uma amiga diz à outra
Vou trocar a minha roupa
Logo mais eu vou voltar
Mas quando
Este adeus tem outro gosto
Que só nos causa desgosto
Este adeus você não dá
A tranqüilidade em exasperar esse desespero, o poder de síntese dos versos, o fatalismo, o brilhantismo do jogo de contrários (“vou dormir pois amanhece”) faz com que – sem negar um certo exagero – possamos comparar Maysa a uma espécie de “Emily Dickinson tropical”.
Como essa mulher tão ousada e cheia de vida construía versos tão melancólicos?
* * *
São esses dois temas os que mais me interessam na série: o olhar do filho e as contradições do processo de criação. Mas como isso é tratado na minissérie (por esses dois capítulos)?
De uma forma distante, de uma forma fria, de uma forma distanciada. Da forma como um diretor da maior rede de comunicações do país trabalharia o tema. A entrevista de Jayme sobre a minissérie fala em “Maysa” na terceira pessoa e sempre desconversa em relação à questão pessoal: mais do que uma ética (um distanciamento respeitoso) revela uma estética (uma assepsia). Jayme não fala de sua mãe, fala de uma mulher “que lutou pelos seus sonhos”, “que foi à frente de seu tempo”, “que lutou contra os preconceitos da sociedade”, “que tentou ser ela mesma”, etc.
Jayme fala de uma mulher, de uma mãe, mas acontece que essa não é “apenas” “uma mulher, uma mãe” especial, é A SUA MÃE.
É desse abismo que surge minha total tristeza (decepção, desencanto...) em relação a tudo o que essa minissérie representa.
Comentários
fiquei com gosto de quero mais. Vai fundo, aprofunde-se em suas impressões, em suas imprecisões ou mesmo em suas indecisões. O importante é que você tocou no ponto nevrálgico dessas questões: como falar de um ídolo, como falar de nossa mãe e como falar de um ídolo-mãe?
Quando estivemos reunidos rapidamente no encontro de 3a.feira, lembra-se que eu estava meio que 'implicando' com o Manoel Carlos pela fragilidade dos diálogos, sobretudo em contraste com a exuberância de sentimentos que acometiam a personagem principal?
Após ler suas considerações, reformulei meu pensar e minha crítica: apesar de a fragilidade dos diálogos da personagem principal ir-se definhando 'gole à gole' ao ponto de se suspeitar que seu filho-diretor - quem sabe em ato-falho - preferisse explorar a repercussão das ações de Maysa, na forma dos 'acidentes', ao invés de explorar àquilo que ela sempre tentou dizer, gritar e esbravejar ao mundo, qual seja, a dor de existir.
Do Jayme Monjardim, filho-diretor, tudo indica que ele manteve quase intactas suas própias indagações à respeito de sua mãe e agora, as compartilha com seus telespectadores. Ele, filho-diretor, apenas reformula para nós as mesmas indagações em um dialeto menos indecifrável do que àquele ao qual ele deve ter sido submetido a compreendê-la. Se compreender um mito já não é tarefa fácil para nenhum fã, imagine para o filho-fã, ter de interpreta-la e mais ainda, traduzi-la e aos seus questionamentos em video, em minissérie, em arte?
Pois bem, meu caro Ikeda, aberta está a caixinha de Pandora. Vermos que efeitos ela nos causará.
Abraços,
Marcus Sodré
Ex-aluno, fã!
marcus@sodrefamily.com