Le Voyage du ballon rouge
A Viagem do Balão Vermelho
de Hou Hsiao-Hsien
*** ½
Ultimamente eu costumo dizer que a origem do cinema contemporâneo é a famosa frase de Renoir que dizia que quando filmava em estúdio, pedia para os seus técnicos abrirem uma janela, para que a “vida pudesse entrar no filme”. Claro que essa (minha) afirmação é uma espécie de piada, mas é exatamente a possibilidade de abrir essa janela o que torna o cinema (contemporâneo) grávido do imprevisto, aberto para a vida.
A Viagem do Balão Vermelho, nova obra-prima de Hou Hsiao-Hsien, diretor que vergonhosamente não teve nenhum de seus maravilhosos filmes lançados comercialmente no Brasil, utiliza esse conceito com um tal nível de refinamento que essa explicitação dos tiques de um cinema contemporâneo não mais é necessária (o que aliás trata-se de algo bastante oriental). O filme na verdade dá continuidade ao filme anterior do diretor, o brilhante Café Lumière, explorado com detalhe aqui. Café Lumière era uma homenagem ao cinema de Ozu feito pelo diretor (taiwanês) no Japão, ou seja, fora do seu país natal. Dialogar com um filme passado, com outro país, outra cultura. Homenagem ao cinema e ao cinema de Ozu não meramente se reportando (imitando os enquadramentos, etc.), mas dialogando de forma profunda, íntima, reavaliando a própria possibilidade de pensar em Ozu “hoje”, 100 anos após seu nascimento. A Viagem do Balão Vermelho é uma homenagem ao filme de Lamorisse, o belo e lírico O Balão Vermelho, e filmado na França. Novamente portanto os temas do olhar estrangeiro e de uma homenagem a um outro cinema.
Mas o que temos em A Viagem do Balão Vermelho? Uma mãe (Juliette Binoche em atuação generosa), que trabalha fazendo vozes num teatro de marionetes, cuidando do filho, que tem uma babá chinesa estudante de cinema, e da casa. Tenta se virar, sem um homem por perto, com menos dinheiro do que gostaria e com um vizinho mala. Espera que a filha volte de Bruxelas para perto dela. Sente-se só. Isto é, a vida.
HHH faz um filme oriental, porque procura, primeiro de tudo, observar, e essa é a sua grande lição apreendida pelo cinema contemporâneo. A habilidade da composição de quadro, da sutil mas presente movimentação de câmera, mostrando que “tudo se move ainda que muitas vezes de forma quase imperceptível”, e da presença do som, envolve tudo com uma tal esfera de carinho e respeito que é difícil não se emocionar com “o lento mas suave movimento da vida que se imprime em cada um dos quadros do filme”. AVBV nesse sentido prolonga o trabalho de composição e de mise-en-scene de Café Lumière.
Cinema contemporâneo de enorme lirismo mas também radical: seja nas externas, em que o som dos automóveis quase sufoca os personagens, ou através do reflexo de vidraças, que funcionam como uma forma de isolar os personagens de seu meio, seja nos interiores, com um trabalho de tempo de grande depuração. Há uma bela sequência exemplar nisso: enquanto o afinador de pianos (que é cego) faz o seu trabalho, o filho de Juliette Binoche fala com a irmã em Bruxelas pelo telefone. Subitamente, sua mãe chega em casa, irrompendo em berros com o seu vizinho recém-despejado. A mãe reassume o controle, fala com a filha pelo telefone, depois pergunta ao filho como foi na escola e se desculpa com a babá pela gritaria. Tudo isso num plano-sequência filmado num interior, oscilando entre o afeto, a explosão da discussão do dia-a-dia, a ausência da filha, o drama da mulher.... um plano que resume as intenções estilísticas e de vida do grande sábio HHH.
AVBV é também um filme sobre o cinema, um filme sobre o processo de criação: um afinador cego que faz o seu trabalho, uma equipe de carregadores de pianos que fazem o seu trabalho, uma babá que faz o seu trabalho e não reclama por não poder se dedicar integralmente “à sua vida de cineasta” e, enfim, uma intérprete num teatro de marionetes que faz o seu trabalho. A babá apenas observa, com uma intimidade e um distanciamento tipicamente orientais, e quando ela fala, geralmente emite dispersos “d´accord”. Ou ainda, uma babá estrangeira que “ ’apenas’ observa ” e que vai fazer um curta em homenagem ao Balão Vermelho, ou seja, uma “babá-gêmea” do próprio HHH. Uma visita ao museu, em que HHH, com toda a simplicidade da sua sabedoria, escancara que seu filme é sobre o processo de criação, é sobre saber observar (um ponto de vista misterioso) e é sobre a distância. E, claro, um filme mágico, uma parábola realista, um balão que persegue um menino e, enquanto isso, um cinema que persegue um balão.
Acho que no próximo filme HHH irá homenagear os irmãos Lumière. Ou, quem sabe, ele homenageie Meliès.
de Hou Hsiao-Hsien
*** ½
Ultimamente eu costumo dizer que a origem do cinema contemporâneo é a famosa frase de Renoir que dizia que quando filmava em estúdio, pedia para os seus técnicos abrirem uma janela, para que a “vida pudesse entrar no filme”. Claro que essa (minha) afirmação é uma espécie de piada, mas é exatamente a possibilidade de abrir essa janela o que torna o cinema (contemporâneo) grávido do imprevisto, aberto para a vida.
A Viagem do Balão Vermelho, nova obra-prima de Hou Hsiao-Hsien, diretor que vergonhosamente não teve nenhum de seus maravilhosos filmes lançados comercialmente no Brasil, utiliza esse conceito com um tal nível de refinamento que essa explicitação dos tiques de um cinema contemporâneo não mais é necessária (o que aliás trata-se de algo bastante oriental). O filme na verdade dá continuidade ao filme anterior do diretor, o brilhante Café Lumière, explorado com detalhe aqui. Café Lumière era uma homenagem ao cinema de Ozu feito pelo diretor (taiwanês) no Japão, ou seja, fora do seu país natal. Dialogar com um filme passado, com outro país, outra cultura. Homenagem ao cinema e ao cinema de Ozu não meramente se reportando (imitando os enquadramentos, etc.), mas dialogando de forma profunda, íntima, reavaliando a própria possibilidade de pensar em Ozu “hoje”, 100 anos após seu nascimento. A Viagem do Balão Vermelho é uma homenagem ao filme de Lamorisse, o belo e lírico O Balão Vermelho, e filmado na França. Novamente portanto os temas do olhar estrangeiro e de uma homenagem a um outro cinema.
Mas o que temos em A Viagem do Balão Vermelho? Uma mãe (Juliette Binoche em atuação generosa), que trabalha fazendo vozes num teatro de marionetes, cuidando do filho, que tem uma babá chinesa estudante de cinema, e da casa. Tenta se virar, sem um homem por perto, com menos dinheiro do que gostaria e com um vizinho mala. Espera que a filha volte de Bruxelas para perto dela. Sente-se só. Isto é, a vida.
HHH faz um filme oriental, porque procura, primeiro de tudo, observar, e essa é a sua grande lição apreendida pelo cinema contemporâneo. A habilidade da composição de quadro, da sutil mas presente movimentação de câmera, mostrando que “tudo se move ainda que muitas vezes de forma quase imperceptível”, e da presença do som, envolve tudo com uma tal esfera de carinho e respeito que é difícil não se emocionar com “o lento mas suave movimento da vida que se imprime em cada um dos quadros do filme”. AVBV nesse sentido prolonga o trabalho de composição e de mise-en-scene de Café Lumière.
Cinema contemporâneo de enorme lirismo mas também radical: seja nas externas, em que o som dos automóveis quase sufoca os personagens, ou através do reflexo de vidraças, que funcionam como uma forma de isolar os personagens de seu meio, seja nos interiores, com um trabalho de tempo de grande depuração. Há uma bela sequência exemplar nisso: enquanto o afinador de pianos (que é cego) faz o seu trabalho, o filho de Juliette Binoche fala com a irmã em Bruxelas pelo telefone. Subitamente, sua mãe chega em casa, irrompendo em berros com o seu vizinho recém-despejado. A mãe reassume o controle, fala com a filha pelo telefone, depois pergunta ao filho como foi na escola e se desculpa com a babá pela gritaria. Tudo isso num plano-sequência filmado num interior, oscilando entre o afeto, a explosão da discussão do dia-a-dia, a ausência da filha, o drama da mulher.... um plano que resume as intenções estilísticas e de vida do grande sábio HHH.
AVBV é também um filme sobre o cinema, um filme sobre o processo de criação: um afinador cego que faz o seu trabalho, uma equipe de carregadores de pianos que fazem o seu trabalho, uma babá que faz o seu trabalho e não reclama por não poder se dedicar integralmente “à sua vida de cineasta” e, enfim, uma intérprete num teatro de marionetes que faz o seu trabalho. A babá apenas observa, com uma intimidade e um distanciamento tipicamente orientais, e quando ela fala, geralmente emite dispersos “d´accord”. Ou ainda, uma babá estrangeira que “ ’apenas’ observa ” e que vai fazer um curta em homenagem ao Balão Vermelho, ou seja, uma “babá-gêmea” do próprio HHH. Uma visita ao museu, em que HHH, com toda a simplicidade da sua sabedoria, escancara que seu filme é sobre o processo de criação, é sobre saber observar (um ponto de vista misterioso) e é sobre a distância. E, claro, um filme mágico, uma parábola realista, um balão que persegue um menino e, enquanto isso, um cinema que persegue um balão.
Acho que no próximo filme HHH irá homenagear os irmãos Lumière. Ou, quem sabe, ele homenageie Meliès.
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